Relendo folhas do caderninho de viagem, vi dois textos que pareciam retalhos que faziam mais sentido juntos. Eles continuam batendo forte aqui dentro, então resolvi trazer meus divertidamente pra fora. Cá estão…
Hey-você-ai, depois de ler, me conta nos comentários o que achou do texto, o que sentiu, ou o que refletiu por aí? Quero ouvir também o que vocês pensam disso, juntar nossas caraminholas 🙃
A droga move a roda
Dezembro, 2023 | Imbassaí (BA)
Eu costumava dizer que eu vivia anestesiada antes de viajar. Como Geovani Martins escreveu no livro O Sol na Cabeça: “a droga é o combustível da cidade”. Essa frase tatuou uma angústia em mim lá em 2017. Qual era a minha droga para a vida?
Eu achava que era trabalho, porque era essa a resposta que dei a essa pergunta por um tempo. Afinal, paulista que sou, a competição olímpica urbana de quem-trabalha-mais-até-a-exaustão também me pegou. Só fui entender minha droga anos depois quando me vi sob efeito dela uma vez mais. Foi quando escrevi:
“A vida viajando tem um veneno que não sentimos quando estamos sob efeito: o movimento. O movimento é uma delícia delirante. Na viagem ela aparece como algo inofensivo, diferente, desafiador. Mas quando você vê, só sabe viver assim: em movimento, no diferente, no desafio.”
O movimento é uma delícia delirante também para quem não viaja. Quem monta uma rotina tão cheia de compromissos que se torna impossível deixar o corpo parado, em silêncio, em descanso. Pavor de sentir tédio, de ouvir os próprios pensamentos.
O movimento vicia, te deixa em um estado de corrida o tempo inteiro e - sem você perceber - não consegue mais parar. Essa era a minha droga antes, e descobri que ainda é.
Se antes eu me entupia de compromissos e encontros com pessoas sem me permitir ficar sozinha, hoje eu me entupo de mudanças geográficas sem sequer me permitir ter uma zona de conforto. E que saudades de ter uma…
Acaba que o novo uma hora não tem mais o mesmo brilho. Toda vez que fica cômodo demais, mude o terreno. Suba montanhas, mergulhe em oceanos, entre em mangues, atravesse desertos, salte de paraquedas, escale árvores. Não existe mais zona de conforto, ela é o novo desconfortável.
Eu moro ali
Agosto, 2024 | Cunha (SP)
Às vezes eu minto que não sou nômade. Não gosto de falar que sou viajante porque isso já vem com uma carga no imaginário das pessoas que prefiro evitar. Falar isso parece que eu me tiro da realidade e anuncio que vivo em um mundo paralelo.
Quando digo que sou viajante, as pessoas não querem mais falar sobre elas mesmas, porque parece que “nada é tão interessante quanto ser nômade”. As perguntas surgem sobre esse estilo de vida e eu respondo, tentando mostrar alguns lados. Porém, um dos maiores motivos de eu gostar de ser nômade é conhecer pessoas diferentes e ouvir as histórias delas. E falar que sou nômade inibe as pessoas de si.
Por isso, se as pessoas não sabem quem sou, eu dou uma pincelada na realidade. Falo que moro em uma cidade de Minas Gerais, ou Bahia, e vou testando qual a cidade da vez.
Gosto de brincar de -futura- moradora por onde passar. Na rua, a conversa segue a mesma:
- Vou morar aqui por um tempo - digo.
- Quanto tempo? - perguntam curiosos.
- Não sei ainda - respondo.
O que não deixa de ser uma verdade. Nisso planto a dúvida se estou procurando um terreno, testando a cidade para morar ou apenas viajando. Todas, na verdade, são respostas certas. Mais importante, é uma resposta que não me afasta das pessoas que converso.
Olha lá fora… mas não tanto
Janeiro, 2024 | Vale do Capão (BA)
Logo eu, que tanto amo borbulhar por dentro, descobri que deixava meu coração acumulando para “sentir mais tarde”. Quase como um botão de soneca acoplado em mim que eu apertava sem perceber.
E esses sentimentos ficam acumulados entre a terceira e a quarta costela, fazem revezamento de qual vai apertar. Até que o movimento vem e tira a minha atenção para viver fora de mim. Porque fora é tão divertido. Basta continuar em movimento. Não pare. Se movimente. Olha que legal o que tem lá fora.
Fico pensando em todas as pessoas que são obrigadas a viver com a droga delas (seja qual for), porque sem ela a vida é insustentável de viver (e de sentir). Quantas vezes por dia abrimos vídeos aleatórios para nos mostrar algo além das nossas vidas? Ou lemos livros e vemos filmes de fantasia que nos fazem imaginar outras realidades? Porque precisamos ver algo além da realidade. Petiscos de felicidades passageiras que duram o mesmo tempo do nosso dedo rolar a tela.
Quase como numa distopia, vamos nos anestesiando do mundo real com conteúdos engraçados, fofos, leves. Desviando de toda e qualquer informação e vídeo que nos cause dor. E não só das dores que vem de fora, mas também das dores e dilemas que vem de dentro. Porque se pensar ou sentir muito… dói.
Estamos tentando sobreviver em um mundo insano que nos cobra anestesias para poder seguir em frente com as nossas próprias vidas. Porque se parar para sentir, quebra.
Quem pode quebrar?
Por outro lado, lembro da paz de conhecer pessoas que estavam contentes em só saber o que se passava ali no bairro. Desconheciam tragédias além das fronteiras da própria cidade. Lembro de ter feito uma troca de trabalho por estadia nas serras do Espírito Santo. Lá tinha um senhor que vou chamar de Carlos.
Na hora do almoço todos nos reuníamos em volta da mesa de madeira no quintal para comer. O rádio velho tocava algumas músicas do interior quando foi interrompida por um som que exigia a nossa atenção. “A Rainha morreu”, proclamaram.
Alguns na mesa se entreolharam assustados, mas sem esboçar grande reação maior que isso. A vida seguia enquanto barulhos de talheres batendo nos pratos continuavam. O silêncio só foi interrompido quando Carlos, no auge dos seus tantos anos, diz:
- Rainha… Essa Rainha é do Brasil?
- Não, seu Carlos, é do estrangeiro - comentou outra pessoa na mesa.
- E o Brasil, tem rei? - Carlos segue perguntando.
- Não, não temos - me contentei em responder.
- Hm, se tivesse, também nunca veio aqui, por isso não sei quem é - resmungou baixo enquanto enchia outra colher de arroz e feijão com mistura quentinha para levar até a boca.
E seguiu a vida, como sempre foi, com um sorrisinho fácil. Minha cabeça já estava conectada em possíveis desdobramentos geopolíticos de guerras internacionais. E de tanto viver dentro da cabeça criando cenários, paralisei. Às vezes confesso que só queria seguir vida também, mas logo vem uma onda de culpa terrível por querer seguir a vida. A minha comida esfriou.
O limite do outro
As notícias do mundo são tão afiadas e dilacerantes que você quer se anestesiar. Precisa. Se apegar na sensação da sua própria pequenez para te lembrar que você não é nada perto do tudo. Porque tudo é pequeno demais perto do tudo. Nossa dor é inútil se comparada a dor do mundo, logo nem deveríamos estar sentindo. Engole.
É quando o corpo exige uma dose de anestesia, uma vez mais. Se anestesiar do mundo rodando por ele. E, de quebra, anestesiar outras pessoas enquanto mostro frações de beleza desse mundo. Quanta hipocrisia…
Não tenho como evitar, muitas vezes me sinto mal ou me sinto uma anestesia para alguém. É uma sensação quase que de palhaço da corte, de estar entretendo alguém enquanto algo muito maior acontece e que precisa da nossa atenção. Só que a nossa atenção por si só também não ajuda em nada… nessa confusão, emudeço. Me recolho em minha pequenez miúda.
Afinal, como falar de viagem em um mundo como esse? Como querer falar sobre simplicidades da vida em momentos coletivos tão difíceis?
Será que é anestesiada que anestesio outros? Será que de vez em quando precisamos mesmo de uma anestesia para continuar vivendo? Não sei, vou fazer uma trilha e já volto.
Tem fases que estou muito negativa comigo e com o mundo a nossa volta. Porque importante mesmo era estar fazendo coisas grandiosas, algo muito maior. Construir uma casa quem sabe, doar PIX é muito fácil. Me paraliso.
Perco o rumo do que estava fazendo e tudo que faço perde sentido. Prefiro me anestesiar, dói menos. Um celular infinito, um livro que me faz sentir outra pessoa, um podcast engraçado que me faça rir, uma taça de vinho para silenciar os pensamentos.
Anestesiada não sinto nada. Nem tédio, nem alegria, nem a raiva, sentimento tão importante que nos remexe por dentro até a gente mudar o que tem fora. Seja indignação com a própria vida ou com o mundo. Só temos como mudar a realidade quando a enxergamos como ela é. E talvez isso exija dor, exija raiva, exija algo que nos faça ir além, transgredir.
Por vezes, me lembro que respirar outras realidades é o que me faz não só enxergar pedaços esperançosos de nós, mas também de querer construí-los. Que esses grandes minúsculos momentos também são parte da realidade, e que só de saber da existência, aquecem a alma. Se aqueceu a minha, pode aquecer a tua, e por isso compartilho.
Foi me anestesiando com pequenas e saborosas doses de movimento que tive mais forças para seguir caminhando e conseguir ajudar outros. Pode ser que compartilhar essas doses sejam mais um respiro do que uma anestesia.
Acho que a palavra não é equilíbrio. Palavra rígida que te força a andar sob uma linha reta prendendo a respiração. Pode ser harmonia, palavra que te convida a dançar de um canto a outro, dosando as porções de anestesia e sobriedade. Sem exageros, usando cada um deles quando for necessário.
Porque -como ouvi uma vez- excesso de anestesia enlouquece, excesso de realidade também. Ter esses respiros da mente com algo mais leve são fundamentais para nós. Acho que é nesses momentos de caos que esses temas sejam tão importantes, para nos lembrar de continuar vivendo.
Com amor, leves doses de anestesia e poucas respostas,
Meu deus, esse dialogo!!! 🥺🤏 Acho que todo mundo queria ser um pouquinho do Seu Carlos de vez em quando.
Creio que o equilíbrio é tudo, o movimento, sim, é maravilhoso, mas a quietude e estar consigo sem medo do ócio, é divino!