1 | Começo de mundo
Mongui, Colômbia jun/23 ☕ Sempre que vamos para uma cidade pequena, difícil de chegar, falamos que é “fim de mundo”. Mongui tinha tudo pra ser mais um fim de mundo, mas foi começo.
Esses dias me perguntaram no Instagram: o que ainda te move de verdade nesta vida de mochileiro?
Em outros tempos acho que eu teria uma resposta na ponta da língua, daquelas bem clichêzonas. Dessa vez a pergunta me secou a garganta e me deu um nó no estômago: Por que eu continuo viajando?
Já se vão 6 anos nessa vida, o que me fez não parar até agora? De verdade?
Fiquei me martelando por dias, pensando no que me motiva a continuar em movimento:
“Conhecer novas culturas”, frase pronta demais.
“Autoconhecimento”, faz parte da vida, mas não é o foco da estrada.
“Aprender sobre o mundo”, verdade, mas é uma resposta clássica de viajante também.
“Conhecer pessoas”, também, mas desde o começo da pandemia eu fiquei
, como dizer…menos sociável. Quem não?
O que ME faz continuar viajando, sem ser tirado de um livro qualquer?
Tem aquela frase besta, mas que é verdade: não adianta procurar a resposta porque ela só aparece quando quer. Foi o que fiz, fingi que esqueci a pergunta e entrei em mais um ônibus pelas estradas da América Latina.
Fim de mundo
Sabe aquelas cidades que são apelidadas de “fim de mundo”? Ficam isoladas, depois dela não tem mais nada. Mongui é quase assim no mapa: a ponta duma montanha dos andes colombianos no estado de Boyacá.
Chegar até aqui já foi um desafio daqueles, o pequeno ônibus municipal vermelho que nos levou reclamava a cada subida que tinha que forçar o motor. Eu mesma, com a mente cansada de viajar e adaptar a rotina mais-outra-centésima-vez, também fiz um grande esforço para chegar até aquele tal de “fim de mundo”.
A paisagem montanhosa dá aquele charme de interior. Um mar de ondas verdes de diferentes tons rodeando e protegendo a pequena cidade de uns quatro mil habitantes. A neblina descia abraçando as montanhas e anunciando aquele típico climinha frio de serra.
Casinhas pintadas de branco, com janelas e rodapés verde ou vermelho. Flores pra todo lado, ruas de pedra. A roupa tradicional daqui é aquele poncho andino que só o pescoço fica pra fora, cobrindo os braços até a ponta dos dedos. E de todas as cores: brancos, pretos, marrons, azuis, vermelhos, cheios de desenhos, formas, cada um estampando um pouco da sua personalidade.
Os ponchos cobriam as pessoas como se fossem abraços de cobertores, fiquei com inveja. Minha jaqueta impermeável-ultra-high-tech–corta-vento-tem-bolso-aqui-tem-bolso-lá não me esquenta tanto e nem era tão legal assim. Bleh.
Na cabeça, muitos homens exibem os chapéus de fazendeiros, cintos de couro na cintura, e os mais velhos tinham bigodes responsa enquadrando o rosto. Pra cena de interior completa só faltou um charutinho pendurado no canto da boca, mas tinha cerveja na mão. As mulheres com longas tranças pretas abaixo dos chapéus andinos ou touca de lã.



¡Buenos días, Mongui!
Acordamos tarde no dia seguinte, domingo é preguiçoso mesmo na vida mochileira. Enrolamos na cama porque o frio de onze graus lá fora não era nada convidativo. Até que ouvimos vozes gritadas em caixas de som, música à distância, “acho que vem da praça”, disse Richard. Quer um convite melhor que esse?
Crianças corriam atrás da bola sem nem ter um gol, rindo umas das outras. Adultos sentados em cada banco disponível na praça, no chão e muitos em pé. O céu azul com aquelas nuvens de enfeite deixavam o dia perfeito para ficar enrolando na praça e ver o dia passar.
Num canto da praça, um churrasco no chão era improvisado. Pedaços de carnes em grandes espetos ficavam em volta dos carvões quentes, dourando a carne e perfumando o ar. Pessoas faziam fila para garantir um pedaço.
Do outro lado, pessoas andavam pra lá e pra cá com grandes panelas, inclusive aquelas leiteiras para tirar o leite da vaca. Segui com o olhar para ver onde elas iam e tinha uma outra fila que levava até um caldeirão.
Quando eu falo caldeirão, pensa num conto de bruxa. Esse caldeirão. Ela poderia facilmente me cozinhar dentro daquela panela de tão grande que era. A senhora em pé ao lado mexia a sopa com uma colher de madeira do tamanho da minha cabeça.
Eu é que não iria ficar de fora. Richard já estava na fila da carne e eu fui garantir a pratada de sopa. Já pulei pra fila e sai contando minhas moedas na pochete para dar os 6 mil pesos colombianos, uns 6 reais. Mas não era uma simples sopa…


Seu Antônio
Uma senhora se achegou pertinho de mim, claramente adotando a forasteira que estava com cara de perdida ali na fila. Ela usava duas grandes tranças pretas caídas nos ombros, com mechas brancas que foram sendo cultivadas com os anos. O poncho dela era preto com desenhos de ondas, montanhas, luas e lhamas nas pontas. Os olhos dela sorriram pra mim antes da boca.
Sorri de volta e aproveitei pra perguntar se tinha que comprar alguma ficha. Ela disse que sim, me apontou onde comprar e garantiu que iria segurar meu lugar na fila. Assim que comprei, ela já tava de olho em mim, balançando a mão no ar como uma amiga de infância faria na hora do recreio.
Agradeci e perguntei qual era o nome da sopa. Não me peçam para escrever o nome, depois de perguntar “como?” duas vezes, eu só sorri e aceitei o que tinham a me oferecer. Vamos chamar de sopa boyacense, na qual ela foi me explicando os tantos ingredientes e eu continuava sorrindo e fingindo que conhecia todos os nomes.
Aproveitei a amizade-de-fila e quis saber se tinham essa festança na praça todo domingo. Ela respirou fundo enquanto dizia um “não” bem longo acompanhado de um suspiro.
“Estamos fazendo esse evento com tudo doado dos agricultores e fazendeiros da região. Um rapaz da cidade, Antônio, está internado em Bogotá. A família dele não tem condições de pagar os tratamentos e nem a estadia deles lá, é caro. A cidade se juntou para fazer essa feirinha e arrecadar dinheiro pra eles. Alguns doaram comida, outros doaram as bebidas, as carnes do churrasco. Outros cozinharam e organizaram tudo isso daqui. Todo o dinheiro é pra dar pra família do Antônio, para eles conseguirem ficar lá com ele e pagar o que precisa.”
Ela disse tudo isso com um nó na garganta e olhos molhados, devia conhecer o rapaz. Não sei quem era Antônio, quem ele era na cidade, se era jovem adolescente, um jovem adulto. Se conhecia todo mundo ou se era mais na dele, ou o que ele fazia pra cidade toda se manifestar assim.
Dava para sentir que ela estava doendo ao me contar aquilo, os ombros até murcharam junto com o olhar e eu não quis cutucar para saber mais por simples curiosidade. Disse que sentia muito, mas que era lindo ver a união de toda a pequena cidade para apoiar a família que precisava. E ela respondeu com a maior naturalidade do mundo, como se fosse algo normal e óbvio pra todos:
“Mas é claro, todo mundo ajudou com alguma coisinha que pôde. Eles precisam de nós agora.”
Ela encheu a panela dela com dez grandes conchas da colher de madeira, se despediu e foi a pé pra casa carregando a panela como se ela tivesse tesouro dentro. Sentei ali na praça e vi que na mesa central tinha uma caixa de papelão com papel de embrulho branco escrito: “Todos por uma só causa: Antônio”.
Ao lado, diversos itens das lojas da cidade que doaram para rifar e dar o dinheiro à família. Crianças dançavam para o público que assistia sentado enquanto comia os pratos ali vendidos e esperando a rifa começar.
Todos produtos doados por lojas locais, toda comida doada pelos produtores, todo dinheiro, todas as mãos por Antônio e sua família.
O que me motiva a continuar
Ver outras pessoas ali, com aquele apoio de quem praticamente é da mesma família foi como uma agulha no meu coração que percorreu meu corpo todo. Arrepiei dos pés à cabeça e desaguei em lágrimas. “Vem aqui, minha choroninha”, disse Richard me puxando para perto do seu peito. E eu sou mesmo, mas isso aqui bateu diferente.
Dizem as boas - e afiadas - línguas que procuramos o que não tivemos, então aqui vai: Eu nunca me senti parte de uma comunidade, não sei o que é isso.
Filha de cidade grande (São Paulo) que sou, por vezes esqueço o que é ajudar uma pessoa do bairro, nem sei direito quem eram meus vizinhos e da vida deles. A naturalidade dela em responder que era óbvio que iam fazer tudo isso, a família precisava deles agora. Tudo isso não era um esforço que eles tinham que fazer, era algo normal.
Só de ver outras pessoas tendo esse sentimento entre elas me enche o coração de esperança. É fácil se esquecer disso com tanto individualismo, mas são momentos como esse que me fazem lembrar. Mais que isso, me fazem sentir.
“O que me motiva a viajar” é um combo de muitas respostas, pode fazer até uma salada mista daquelas opções que falei lá no começo. E acrescentra isso também: “lembretes de nós”. São esses pequenos lembretes de quem somos, não é disso que o mundo é feito? … Ou pelo menos deveria ser?
Ter um respingo em mim desse sentimento deles me fez lembrar que talvez eu viaje para ter o que eu não tive: ser pertencente de um lugar… um dia.
Assim que sai da praça gravei um áudio [de 7 minutos, tadinho] pro meu pai contando sobre o que tinha acabado de ver. Ele respondeu: “É… seu pai está com a Síndrome da Humanidade Perdida (eu inventei essa doença). Preciso sentir mais momentos como esse para ver que estou errado.” Talvez eu também tenha um pouco dessa Síndrome, talvez todos nós tenhamos um pouco.
Uma dose de vida
No fim, acho que isso é o que me motiva a viver, não só a viajar. Sem ter esperança nesses pequenos-gigantescos atos de comunidade a vida fica amarga e solitária demais. E confesso que minha vida andava amarga mesmo. Esqueci desse mundo aqui fora, real, com cheiro de churrasco de chão, gotas de sopa na roupa, e palavras gritadas em microfone… esqueci que esse mundo existe.
Tem que sujar os pés pra ver com os próprios olhos, se emocionar com o corpo todo. Iria ser muito difícil - ou até impossível - encontrar isso no feed pelas redes sociais. Mesmo sendo “feed infinito” não é capaz de mostrar as histórias escondidas em cantos de “fim de mundo”. Eu viajo pra ver, mais que isso, pra sentir isso.
E eu com certeza não iria sentir o corpo todo ardendo em esperança. O que eu senti, eu só senti porque precisei estar ali: uma lasquinha do que é se sentir parte de uma comunidade. Pra reacender em mim uma esperança de um futuro que às vezes esqueço que é possível.
Mas nem tudo é mil maravilhas. Levei esse evento para a terapia para entender mais ainda o porquê me mexeu tanto. E a conversa foi: ter uma comunidade não é só ajudar, é aceitar ajuda também. E essa segunda parte bate de frente com a versão que a sociedade tanto estampa de “tem que se bastar só”. Versão que eu tanto abracei viajando sozinha.
E engolir o meu apego por “se bastar” - como se isso sequer fosse possível, e sim pedir, aceitar, receber ajuda… Talvez só assim eu consiga começar a criar um lugar que pertenço inteiramente… aceitando fazer parte e, pra isso, ser ajudada. Confesso que seria muito confortável culpar totalmente São Paulo, mas será que foi me minando de ajuda que acabei me sentindo não-pertencente?
💥 Por isso que Mongui foi meu começo de mundo, e não fim de mundo. Porque esse pedaço de terra me fez lembrar que esse é o começo do nosso mundo, em comunidade mesmo, uns com os outros e pelos outros. Ajudar e ser ajudado. Não é de comunidade que somos feitos e tanto buscamos?
É isso, viajo pra sentir o que não teria como sentir de longe.
Obrigada, Mongui!
Um bom começo de mundo pra nós 💛
AVISO: Essa resposta pode mudar a qualquer momento porque a vida dá dessa e a estrada adora puxar o tapete. Mas, por enquanto, é isso.
Oie 🙃
Se chegou até aqui (parabéns, garantiu a leitura do ano!!!), escreva nos comentários o que achou do texto, o que sentiu, o que refletiu por ai. E calma, nem todas vão ser longas assim, rs, me empolguei.
E se achar que uma amiga ou amigo pode se identificar, que também está com a tal da Síndrome da Humanidade Perdida, compartilha!
HEY, antes de ir, me conta nos comentários se tem algo que você procura e que sente que não teve também! Quero ouvir o que te faz continuar, seja a viajar ou a viver…
Um xêro de Mongui,
Delícia de texto, Lanna. Sensível e sensorial. Ahh, pode escrever bastante que a gente lê tudo até o final rs continue se empolgando 💜
Ainda estou buscando essa resposta. Parece que é tão obvia para mim, quando sei que é isso que quero continuar fazendo. Sei que quero, mas não exatamente porquê quero - o motivo principal...
Lindo o texto!