📍 Comunidade Ribeirinha em Breves, no Pará | Janeiro, 2019
Assim que provei uma fruta amarelinha, oval, manchada de terra, meu cérebro explodiu e uma nova paixão surgiu. Aquela pequena fruta, meio-azeda-meio-doce, lambuzava minha mão e rosto feito criança. Uma outra criança de 5 anos percebeu, e descobriu que na minha cidade não tinha essa tal fruta chamada petarebá. Ficou horrorizada.
Dali em diante, era eu abrir os olhos ao acordar na rede da varanda, que ela já falava: “petarebá?” enquanto esticava suas pequenas mãos para me oferecer um punhado delas. E essas se tornaram minhas palavras favoritas ali na comunidade ribeirinha de Breves, desde que saindo da boca dela. Boca com dentes faltando, olhos de açaí brilhantes e esbugalhados, cabelo de cor madeira em seus diferentes tons.
Busquei o nome da fruta na internet e nada. Petarebá parecia não existir no mundo, só ali naquele pequeno pedaço de terra no meio do rio. Em uma sugestão do Google, ele me corrigiu: “você não quis dizer ‘pereba’?” Não, não era isso. “E que tal ‘taperebá’?” Sim, era isso!
E ainda me mostrou outras opções para essa mesma fruta. Como cajazeiro, cajá, cajá-mirim, cajazinha, taperebá, trapevá, acaiá, acaiaba, acajá, acajaíba, ambaló, ambareira, ambareiro, ambaró, cajaeiro, cajarana, cajá-pequeno, cajazeiro-miúdo, catona, guegue, ibametara, cajá manga, minguengue, moxubiá, muguengo, muguengue ou umbu-cajá. O Google não dá conta do dicionário próprio criado por uma menina de cinco anos. Onde mando uma mensagem para adicionarem petarebá?
A mãe me confidenciou orgulhosa que assim que a pequena acordava em sua rede, ela levantava e corria para a mata coletar os meus tesouros. Enchia a camisa do máximo que conseguia carregar e ia me esperar acordar. E, de vez em quando, trazia uma fruta nova e perguntava se eu tinha em casa. A do último dia foi Ingá, e eu não tinha em casa. Ela ficava assustada cada vez que eu balançava a cabeça para os lados. “Que vida triste deve ser”, os olhos de pena dela me diziam.
A vida lá realmente era diferente do que eu conhecia por infância. Ela entrava num pequeno barco de madeira e entrava igarapés adentro. Sozinha. Saberia voltar? Um menino de 2 anos, pelado, segurando duas garrafas pets cheias de ar amarradas debaixo dos braços, pulava do deck pro rio. Meu coração desesperava com tamanha liberdade tão cedo. Algo que demorei algumas décadas para provar. “Que vida triste deve ser”, me vi invejosa.
As mães estavam sentadas em frente à casa, costurando uma camisa rasgada e a outra descascando algo pro almoço. Sem esboçar a menor preocupação da pequena estar desaparecida por 5 minutos ou pelo menino estar boiando em alto rio com duas garrafas pets. Nisso, a criança de dois anos usa suas garrafas de boia e nada de costas até chegar onde queria: no barco com os primos, que brincavam de rodar a embarcação que nem pião.
Aquela cena, aquelas risadas, me distraiam do fato da minha pequena petarebá ainda estar sozinha igarapé adentro. Depois de mais uns minutos, que pra mim foram horas, ela apareceu sorridente por entre os galhos. Exibindo seus fortes músculos de quem tanto usa o remo, com cabelo grudado na cara de tanto suar.
Falei que ela é a remadora mais rápida do mundo, e em resposta ela me convida a entrar no barco com ela. Entro com calma, sem jeito, disfarçando a falta de equilíbrio, tentando não nos derrubar da pequena embarcação. Ela me passa o remo e vai me guiando com palavras e mímicas, dando risada dos sons que faço com a tamanha força dos meus fracos braços. Se cansou de ser professora de algo tão básico e pulou no rio com as outras crianças. "Vem, tia!"
Remei mais um pouco sozinha, sem a supervisão da minha pequena guia. Sentia o fluxo do rio mudar a direção do barco, aprendendo a deixar me levar e a usá-lo ao meu favor para chegar onde quero. Como a vida e suas tantas correntezas.
Pulei no rio para refrescar do calor abafado que só a Amazônia em temporada de chuva sabe fazer como nenhum outro lugar. Rimos, brincamos, competimos quem tem mais fôlego e quem chega do outro lado primeiro. No começo, meu corpo urbano assustou a cada galho que a correnteza jogava contra meu corpo. Depois, gargalhavam com minha habilidade de pegar folhas com os dedões do pé.
Do nada, a brincadeira mudou e as meninas estavam todas nadando rápido rumo ao deck, gritando. Os meninos nadavam com o corpo todo embaixo da água, deixando apenas uma mão para fora que segurava um buquê de flores e gravetos molhados. "Cuidado com o boto, tia, corre!”, alertavam as pequenas.


O olhar das meninas era de medo. Dos meninos, de brincadeira. É triste notar que a lenda do boto acoberta a história real. O “boto cor de rosa” que seduz pequenas meninas e jovens mulheres e as ‘engravida’, sumindo de suas vidas. Demorei tantos anos pra notar as cicatrizes de tantas mulheres numa lenda tão conhecida, mas tão longe de mim.
Na hora do jantar a TV estava ligada, com o Jornal Nacional passando. Imagens, pessoas, cidades, realidades que em nada se pareciam com onde eu estava. Quantas vezes eles se viram no jornal? Na TV? Eles já se viram ali?
Passa uma propaganda de moto, e a pequena me puxa a camisa para falar: "meu pai falou que essa é a rabeta1 da cidade, é verdade, tia?” Sim, ele tem razão, respondi rindo da sensível analogia.
- Você já foi pra cidade? - Perguntei.
- Minha mãe falou que eu só fui bem bebê, mas eu não lembro, agora já sou crescida - Respondeu toda gigante.
- E tem vontade? - Fiquei curiosa.
Ela pensou, olhou pra cima, torceu o biquinho e respondeu:
- Não, pra quê?
Os adultos deram risada, talvez se identificando com a resposta da pequena gigante. Jornal estava chato, cheio de fins do mundo muito longe do mundo dela. Me pediu meu caderno de viagem para desenhar. Atenta, queria saber o que aquelas mãozinhas iriam rabiscar.
Será que seria um peixe como aquele que pescamos no almoço?
Ou seria uma árvore bem grande com a preguiça que apareceu no quintal?
Ou quem sabe iria desenhar a casa dela, que como as demais da comunidade ribeirinha, ficava sob a água sustentada por 4 grandes e grossos pilares de madeira?
Da varanda, onde eu dormia, conseguia até ouvir o rio fluindo.
Contra todas as minhas apostas (e as suas), ela desenhou o completo oposto. Três bolas empilhadas, um nariz de cenoura e duas bolinhas no lugar dos olhos. Sim, uma menina ribeirinha desenhava um boneco de neve. Mas, por algum motivo, ele tinha um chapéu quadrado e um… rabo? E, claro, esqueceu o cachecol, acho que ela nem deve saber o que é isso.
Um dos poucos desenhos que ela viu na televisão foi Frozen. Aquele não era qualquer boneco de neve, era o Olaf. A única semelhança com o mundo dela eram os braços de graveto, imaginei. Até que ela falou:
- Sabia que os olhos dele são de açaí? - me confidenciou.
- Ah é? E você sabia que tem um filme que mostra uma menina que gosta muito de barco também? - falei pra ela, tentando trazer o mundo dos desenhos mais perto dela.
Aqueles olhos de açaí brilhantes encaravam com toda a atenção o meu celular, que passava um trecho do filme Moana. Esse foi o desenho mais próximo a ela que pude pensar na hora. Ela pegou meu celular e foi correndo mostrar pra sua mãe o desenho “da menina que anda de barco igual a ela”.
E quando a TV desligou, o silêncio tomou conta. Subi na minha rede, coloquei meu mosquiteiro e fiquei escutando cada cigarra e sapo cantarolar minha canção de ninar favorita junto do rio.
Mas, pra quem é da cidade, o barulho se instala em nossa cabeça, não desliga com um botão. Meu corpo ainda não está acostumado à rede, e minha cabeça ainda tentava entender o dia de hoje.
Quando uma mulher com um filho de 3 meses ainda não deu nome porque "não sabia se iria vingar". Ou que uma pessoa foi levada pela correnteza há umas semanas e procuravam o corpo colocando meia abóbora cortada com uma vela acesa dentro boiando. Onde ela parasse e apagasse, ali estaria o corpo. Não estava. Ou da gorda multa que eles receberam por terem comido tartaruga e como meu cérebro se confundia com conflitos sociais desse país que… é mesmo o mesmo que o meu?
Até que lembrei dos petarebás que comeria ao acordar e esqueci dos fins e conflitos de mundo. Sonhando com o sorriso furado que veria pela manhã, fui adormecendo. “Ai não… Agora ela vai querer colocar a galinha dentro do barco, igual a Moana faz no filme. Eu vou levar a maior bronca da mãe dela!”, pensei antes de cair no sono profundo ao som do rio.
Com amor e com saudade de me lambuzar de petarebá,
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Recadinho pra 2025
Final e começo de ano aqui foram bem deliciosamente lentos. Ainda não voltei com tudo pra cá com toda atenção e carinho que gostaria, então, não vou pedir desculpas porque foi necessário esse momento com menos telas. Mas vou pedir uma pitada de paciência enquanto me readapto e volto ao ritmo por aqui.
Obrigada pelas trocas de 2024 e que venham mais histórias e conexões por aqui em 2025. Um feliz novo ciclo para nós! 💛
Rabeta é um pequeno barco de madeira que tem um motorzinho.
Dizer o quanto os seus áudios junto ao texto trazem uma magia e um toque pessoal pra quem lê. A gente se aproxima e se envolve mais . Sinto com muito mais clareza o ritmo da forma como você a vivenciou. E gostando muito desses relatos longos e trazendo o que tem mais de importante na viagem, o lado pessoal de como as coisas e informações se apresentam. Bom demais !
Fui transportando para a Amazônia com esse texto 🥹 E parabéns pela interpretação no áudio, lembrei muito do que você e o Richard me apresentaram das histórias amazônicas, o Pavulagem.
E rabeta da cidade foi fantástico!!!!