Em um jantar com um grupo - que havia acabado de conhecer - eles me cantaram essa música depois deu falar que não tinha CEP para receber encomendas (?). E entre risadas de todos, me arrancou um sorriso confuso. Porque nada é mais libertador e aterrorizante que isso. Claro, é diferente, eu não sou uma pessoa em situação de rua, eu escolhi não ter um único teto.
Aproveitei que estava precisando parar, fingir que tinha um teto e juntar mais tralhas, e foi o que mais fiz esse ano. Vim aqui compartilhar mais textos socados no fundo do caderninho de uma viajante. Lendo agora parecem sinais tão claros do quanto eu precisava desse ano de 2024, ano em que tive casas por mais tempo.
Foi lendo o caderninho que entendi o que estou vivendo e me perguntando: por que raios demorei tanto?
O que vem depois
Fevereiro, 2023 | Santa Marta, Colômbia
O ônibus chegou às 4h da manhã na rodoviária de Santa Marta e o motorista gritava como quem se encheu de café a noite toda: "TERMINAL, LLEGAMOS!". Todos acordando amassados, se espreguiçando aos poucos, soltando grunhidos sem querer. Eu dormi de um jeito tão estranho que acordei com a bochecha dolorida. Esfreguei o rosto numa tentativa de acordar o corpo todo e cutuquei Richard, que ainda roncava.
Estava tudo silencioso na rodoviária, algumas poucas companhias e lanchonetes funcionando. Normalmente, eu durmo no chão esperando o dia raiar para pegar um ônibus, mas não nos sentimos confortáveis aqui e resolvemos pegar um táxi até o conglomerado de hostels que tem no centro.
Digo o nome de um hostel mais central para o motorista, que faz cara de confuso. Logo três outros taxistas brotam levantando dum banco com todos os tipos de referências:
- Aquela casona amarela que tem uma árvore gigante na frente.
- Fica do lado daquela antiga padaria La Farine que fechou, lembra? Ficou um tempo sem nada e agora abriram uma loja de roupa.
- Lembra do seu Andres? Aquele senhor que é bicicleteiro há décadas? É na rua detrás da dele!
Eu fico hipnotizada deles dando todos os tipos de referências para o nosso taxista. Será que um dia vou ficar tempo o suficiente numa cidade para saber o que vem depois da placa de "aluga-se"? Decorar as árvores, as cores das casas, ver as ruas mudando aos poucos. Ansiosa para quando esse dia chegar…
[…]
Dias depois, voltei pela terceira vez no mesmo mercadinho para comprar umas frutas. A mulher do caixa não me perguntou o meu “RG colombiano”, sabia que meu cartão estava com o chip ruim e não funcionava aproximando. Ela pegou meu cartão e ela mesma falou: “não tá aproximando, né?” e inseriu na maquininha. Ela lembrou de mim. É pequeno, eu sei, mas eu fiquei feliz... Talvez mais feliz do que eu deveria.
Tá, que ridículo, preciso de uma casa… [temporária].
Faz de conta
Novembro, 2023 | Vale do Catimbau (PE), gravação da websérie Sertão Adentro
Quero brincar de ter casa.
Cultivar raízes e depois levá-las comigo, penduradas em mim como novas partes de quem sou. Testar e provar tantas rotinas diferentes que, quando eu voar outra vez, eu possa ter o que escolher para viver naquele momento. Cada vez estadias mais longas, cada vez mais a bolsa do mercado pesada, cada vez mais me esparramo em todos os cômodos da casa.
Sei que quando eu tiver tudo isso, vou me cansar e querer não ter mais teto. Será que algum dia irei me preencher do que vivo? Ou será essa a sina humana de nunca se sentir satisfeito? Acho que essa viagem me bagunçou mais do que eu imaginava.
No tempo de uma carona
Fevereiro, 2024 | Chapada Diamantina (BA)
*Dica: eu escrevi, mas é sobre um encontro que tive com alguém escrita na voz da pessoa.
Gosto de começar o dia assim, cedo. Faço questão de alongar o corpo ainda de olhos fechados, mas hoje foi dia de treinar em grupo. Pulo da cama e vou no caminho para a aula observando as cores do céu se misturando aos poucos com o amanhecer. Deixo a música do carro desligada para ouvir o som dos pássaros, que voam pincelando o ar.
A aula na manhã fria vai aquecendo o corpo aos poucos, mesmo com a chuva forte que começou a cair lá fora. A cabeça segue pensando no punhado de coisas que tenho para fazer. E com a mente acelerada, a aula acaba num piscar de olhos. Entro no carro com a cabeça ditando a ordem dos afazeres do dia. “Tenho que pegar a encomenda no correio, comprar as frutas, ver se tem húmus de minhoca para as plantas, e comprar mais ração pros cachorros e gatos. Quem sabe agora não tenha umas mudas de manjericão no horto do centro…”
A chuva agora fina caía na estrada já ensopada, a lama fazia o trajeto virar um desafio. Não é problema para o meu carro, o grande Uno. Ao virar a esquina, uma mulher que acabou de fazer aula comigo estava andando de jaqueta vinho. Patinando no chão que já virara argila.
- Quer entrar? - ofereci. Ela disse sim sem hesitar. - Eu só vou até a entrada da mata - Aviso.
- Obrigada, qualquer 500m já compensa nessa chuva - Ela falou enquanto abria a porta do carro.
Não sou muito de conversar de manhã, mas ela é daquelas curiosas que gostam de saber mais das pessoas. Os grandes olhos jovens estavam sedentos por uma interação humana. Por sorte, a viagem seria curta.
“Como veio parar aqui?”, foi a sua primeira pergunta. Como uma mulher de quase 60 anos vai contar sua história em uma carona de carro? Respondi com poucas palavras que é o que cabe naquela conversa enquanto viro e reviro o volante para escapar dos buracos e das perguntas dela.
“Como foi escolher um lugar para morar depois de tantos anos rodando por aí?”, me perguntou em seguida. Virei pro lado e ela estava me olhando atenta, quase como se estivesse memorizando o que eu iria falar. Esperando eu dizer algo para anotar na mente, palavra por palavra.
Vi nos olhos dela que buscava uma pessoa que teria as respostas para o dilema que ela vive hoje. Os mesmos que eu já tive um dia. Achou que eu daria uma pista, um sinal, algo que mostrasse a ela o caminho a ser seguido. A bruxa da floresta de longos cabelos brancos que oferece sabedoria.
Bom, é verdade que eu tenho os longos cabelos brancos. E que em muitos aspectos ela se veja em mim como a pessoa que ficou tanto tempo sem pertencer e um dia pertenceu. Que escolheu pertencer. Quer que eu lhe mostre o caminho a ser trilhado, lhe dê um mapa e uma bússola.
Na idade dela eu também queria saber muito, saber antes, agora o silêncio me contenta. Se pudesse “voltar atrás” e dar conselhos para mim mesma na idade dela, não diria nada. Ela vai ter as respostas dela, que com certeza serão diferentes das minhas.
“Você sente”, me limitei a dizer. Porque, no fim, isso resume tudo que dá para ser falado no tempo de uma carona. Sentir.
Oooi, se gostou desse Cartão Postal, fica o convite para compartilhar com outras pessoas 🙃


Trocar a água
Março, 2024 | Chapada Diamantina (BA)
* Escrito na oficina da Editora Comala.
Eu sei que a estrada chama, e que a vontade de sair correndo é grande. Respira. Tem movimentos internos que só acontecem quando você finca os pés bem firmes no chão. Se tem alguma coisa que aprendi nessa terra fértil chamada Bahia, é que faz bem deixar as raízes crescerem. Dá vida.
Esses dias comprei um chumaço de manjericão na feira, separei alguns para tentar plantar. Os coloquei num copo de água transparente e agora posso ficar horas observando as pequenas raízes brotarem no fundo do galho. As folhas ficaram mais verdes e suculentas, tenho que me segurar para não comer. Até mesmo as flores apareceram. Sem terra, só água.
Vi o cuidado que dei àquele magro graveto, fiquei com inveja. Deve ser tão bom ter um lugar que te dá goles de vida. Confesso que por muito anos não me dei o mesmo cuidado que dei a um mero punhado de manjericão.
Cultivar essa raiz por um tempo não é aterrar de vez, que era o medo que me fazia arrancar os galhos antes deles sequer ousarem se entrelaçar com a terra. Nunca me dei tempo o suficiente para crescer e não entendia o motivo de murchar. Criar um pouco de raiz é conseguir ter mais vida para ser plantada por onde passar depois. Seja onde for.
Depois de um tempo de respiro, de raiz, tenho mais fôlego para seguir por aí… estou ansiosa para o que vem. Até eu ser plantada de novo noutro punhado de terra. E noutro. E noutro. E noutro…
Se o corpo anestesiar com o movimento, não se esqueça de trocar a sua água de vez em quando. Daqui para frente, deixe a raiz brotar.
Com amor, goles de água e um punhado de terra,
"Trocar a água" me tocou profundamente <3
Que cartão chique, sempre aquela escrita que é um abraço. Porém agora não é um mero email.