Começar a Rota da Seda de Portugal é confuso. Preparei meu corpo pra tanto contraste, tanta novidade, que ele não entendeu quando cheguei em Lisboa e a primeira coisa que vi foi uma cafeteria com: açaí, coxinha, guaraná e tapioca.
Ele se sentiu traído, iludido, fiz uma falsa promessa. Entendo fazer greve de realidade e me deixar zonza por uns dias.
Deve ser por isso que ainda tenho a falsa sensação de estar em casa, porque, de certa forma, é casa. Encontro comidas muito parecidas, a calçada é muito parecida, temperos, e consigo até mesmo ouvir as fofocas nas mesas do lado. É fato que as pessoas não são tão abertas como nós, nem sempre cumprimentam na rua ou sequer olham ao cruzar caminho. Isso já esperava.
Mas se tem algo que não esperava era não saber me comunicar na minha própria língua. O português não é o mesmo, quase me pego fingindo não ser brasileira para vermos quais outras línguas temos em comum.
Entre os bate-cabeça de vocabulário e cultura, entro numa padaria com traços que me lembram o Brasil. Sento numa das dezenas de cadeiras no balcão circular, peço uma meia de leite (café com leite) e um lanche francesinha, típico da região. O atendente, Jaime, é um senhor falante, os fios brancos estão penteados pra trás com gel e ele fala com os clientes enquanto tira os pedidos de outros.
Descobre que somos do Brasil e começa a comentar as diferenças culturais de horário de almoço em Portugal comparado com nós, sobre a francesinha, e o curioso fato de uma cerveja ou taça de vinho vir inclusa no valor do PF aqui. Falava empolgado, mas tudo embolado. Eu, perdida, sem nem saber se ele falava comigo ou com outra pessoa, apenas dou sorrisos simpáticos, concordo e aguardo meu lanche.
Por 45 minutos.
Aquela conversa toda era ele me contando que aqui em Portugal existem pratos (mesmo lanches) que só fazem na hora do almoço. E que, por isso, não iria ter minha francesinha antes do meio-dia.
Aparentemente, ele me falou isso, mas eu não entendi nada e fiz o que farei muito daqui pra frente: sorrir, balançar a cabeça como quem entende e ver o que acontece depois. Nesse caso, uma bela fome acumulada. Pelo menos fiz um sudoku no jornal do seu Jaime enquanto esperava.
Em outra ocasião, entro numa loja para ver botas de trilha e pergunto:
— Oi, boa tarde, tudo bem? Tem banheiro pra clientes?
O segurança, sorridente, me responde:
— Banheiro? - faz uma breve pausa - Ah, claro, casa de banho. Temos sim.
Ele me olha, eu olho pra ele. O silêncio se instaura no ar. Espero que ele me aponte onde fica o banheiro, ou a tal “casa de banho”, o que seja. Parecia óbvio que eu queria saber onde fica, mas não, aqui nada é óbvio. Aqui tudo é literal.
— Poderia me dizer onde fica, por favor?
— Mas é claro… descendo aquela escada, lado esquerdo, final do corredor.
É, eu não estava preparada para não conseguir me comunicar na minha própria língua.

Cartão Postal de Sintra | Ponto inicial
Esse projeto começou emocionalmente em Lisboa, enquanto escutava um lindo fado. O ponto inicial prático mesmo é a Praia da Ursa, dando um mergulho nas águas do Atlântico. Só vai terminar quando esse mesmo corpinho entrar em contato com as águas do litoral da China, no Pacífico.
Quando cheguei na Praia da Ursa, com um postal em mãos, escrevi palavras de encorajamento para mim mesma. Gosto de escrever as minhas intenções prestes a começar algo novo ou grande. Quando a vontade de jogar tudo pro alto bater - porque sempre bate, posso reler e me lembrar dos meus motivos de fazer o que faço.
Aqui vai:
“Praia da Ursa | Onde a Rota da Seda começa oficialmente.
Nem sei o que escrever, muito menos sentir. Espero que essa viagem me mostre que eu sou aprendiz da vida, eternamente. Que me dê olhos de criança, aquele brilho no olhar de encantada com as miudezas do caminho.
Quando o cansaço bater, sinta, chore, corra, durma. Se cuide de corpo, alma e coração para conseguir estar presente na viagem.
Viva mais do que grave, que os vídeos sejam baús de memórias. Um grande acervo para você poder reviver o que sentiu na pele. Foque nisso.
Escreva, escreva muito. Registre sentimentos, pessoas, histórias, lugares. Ouça, escute os outros, aprenda com o diferente e não compare com a sua cultura ou visão de mundo — e nem com a América Latina.
Essa é uma nova história, um caderno em branco. Esteja aberta pra colorir com as mais diversas cores de cada canto desse mundo. Com calma, sem pressa.
Respeite, escute, aprenda, descanse.
Que esse seja o começo de uma nova etapa da sua vida.
Com amor,
Lanna”
Com amor, e tendo que perder traços da latinidade pra ser o mais literal possível,
Quem escreveu esse trem aqui?
Oi, sou a Lanna, jornalista por formação, comunicadora desde sempre. Viciada em chocolate, macarrão e curry. Viajante desde 2017 e escritora desde que aprendi a rabiscar cadernos. Eu não dispenso uma boa conversa com desconhecido, e adoro questionar as pessoas como elas enxergam a vida.
Gosto de escrevinhar histórias que vivi, senti, e ouvi por esse mundão véio sem porteiras. Agora, numa jornada -insana- de Portugal a China por terra. Bora nessa? Se achegue mais, puxe uma cadeira. Fica o convite para responder essa história e me contar sobre você ✉️
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O idioma que falamos por aqui é tão mais bonito, rico e diverso, que diria que nem dá para chamar de português mais.
Curioso que na primeira passagem por Portugal, em Lisboa, eu e mais dois amigos (um uzbeque, um italiano/alemão/argentino), bati no peito e falei "deixa comigo, eu falo o idioma". No primeiro albergue, a rapariga (conotação de bom sentido por lá) me ouve, vira para o lado e comenta "eles falam brasileiro". Fiquei confuso. Ofendido. Não senhora, eu falo o mesmo idioma que a senhora. Hoje, eu sei que não. Ainda bem. Idioma feio esse tal de português.
Uma recomendação de leitura: Latim em pó, do Caetano Galindo. Dá uma pincelada na evolução do idioma, desde a partição de regiões em diferentes tons de latim, até o que temos hoje em cada país lusófono.
Eu senti isso na Argentina. É estranho mas abre nossa mente, para mim viva o duolinguo, bons ventos sempre.