1 | Criar cachorro, 2016
📍 Ubatuba - São Paulo
[2 minutos]
Viajamos 4h de carro para visitar um dos quilombos em Ubatuba. Com a pavimentação da rodovia, eles passaram a receber visitantes e abriram suas portas aos "de fora". Nessa época, eu trabalhava na TV ALESP, do Estado de SP. Nosso papel era falar do impacto na comunidade, mas eu não tinha nem ideia de que seria esse o impacto…
– O que mudou aqui na comunidade desde que o asfalto chegou? - perguntou o repórter, querendo a frase de efeito mastigada pra colocar no vídeo.
– Tudo. Agora temos que criar até cachorro - respondeu seu Ignácio, dando um sorriso sério.
– Como assim? – questionamos.
– Antes eles viviam soltos por aí, que nem as galinhas. Mas teve uns dois que o carro passou por cima, e agora estamos criando cachorro. Como os porcos, sabe? Os cachorros não gostam, nem a gente, mas não tem o que fazer…
Dei risada, porque nunca pensei que “prender” um cachorro seria o equivalente de criar gado, cavalo, porco. Pra eles, era.
– Os de fora vêm aqui, passam o dia, compram nossas artes, ouvem da nossa vida. Mas o asfalto também levou muita gente. Os jovens não querem mais ficar, todos pegaram o asfalto rumo pras cidades.
Quando pensamos em um lugar simples, humilde, muitas pessoas logo pensam em estradas de terra, chão batido. O asfalto entra como progresso, evolução. E era isso que fomos lá mostrar, como o asfalto levou prosperidade para as pessoas que ali viviam.
… Pelo menos, o que é prosperidade aos olhos dos paulistas engravatados. Que nem cogitamos que não seria a mesma prosperidade deles.



2 | 5 minutos, 2018
📍 San Pedro de Atacama - Chile
[2 minutos]
Eu era a única visitante do Museu del Meteorito em San Pedro de Atacama no Chile. Aquela manhã estava tão tranquila que o guia resolveu me dar um tour privado. Aproveitando a curiosidade nos olhos da jovem que queria entender mais do céu, explicou tudo e mais um pouco. Encenava cenas de explosões no universo, pude tocar em meteoritos e pós de estrela.
Das conversas do céu, começamos a falar da vida. Era chileno, da grande Santiago, fez faculdade de física. Desde criança gostava de mágica e caiu na estrada pra fazer seus truques em farol, restaurantes. San Pedro o abraçou e ele conseguiu um trabalho no museu como guia, falando sobre o céu que tanto ama.
Perguntei como era sair da grande cidade para um lugar que tem um punhado de pessoas. Do que ele sentia falta.
– Nada.
– Nadinha de nada?
– Das pessoas, claro. Mas da cidade, não, aqui eu tenho muito mais do que poderia pedir.
– Tipo o quê?
– Minha casa, mercado, amigos por perto, minha bicicleta que venho trabalhar todo dia e ainda faço uns passeios aqui perto com ela. Acredita que eu demorava mais de uma hora pra chegar no trabalho em Santiago? Agora eu demoro 5 minutos, e ainda pedalo com essa vista - aponta pro vulcão no horizonte - entende?
Eu entendia. Entendia demais. A São Paulo que vivi era a mesma história, a mesma rotina. Trem > metrô > ônibus > caminhada todo dia para o trabalho e faculdade.
Mesmo vindo de boas condições que minha família me deu, não escapei das 3h por dia dentro de transporte público. [não, eu me recuso a fazer contas de quanto tempo da minha vida fiquei enlatada]
O problema era que amigos e conhecidos faziam o mesmo, tinham trajetos mais “homéricos” que o meu. Como saber que existe outra vida a ser vivida?
Quando cai na estrada de cabeça, aprendi que viver outra vida é possível. Umas vezes aprendia sobre uma nova forma de ver a morte, a comida, minha espiritualidade. E, outras vezes, o ensinamento era tão simples e grandioso de que “sim, existe um mundo possível que demora apenas 5 minutos de bicicleta pra ir ao trabalho".
Aluguei uma bicicleta, pedalei por 10 minutos no deserto. Difícil pra burro.



3 | Pro futuro, 2021
📍 Coroa Vermelha - Bahia
[2 minutos]
Era dia de protesto. Estava morando 6 meses em uma cidade majoritariamente indígena, uma grande aldeia urbana Pataxó. Coroa Vermelha. Fomos acolhidos ali por eles, na praia que Pedro Álvares Cabral berrou "terra a vista”.
Séculos depois, eles seguem pedindo direito de habitar aquela terra. Para apoiar, fomos protestar ao lado deles. Fotografando para enviar ao Mídia Indígena, para impulsionar a causa para quem não estava ali.
O protesto parou a rodovia, a conexão com Porto Seguro. Porque se o protesto não paralisa o movimento dos outros, não chama atenção, nada muda. E eles não só paravam, como dançavam, tocavam, e cantavam suas causas de forma como nenhum outro protesto -que fui- fez. Entre uma música e outra, paralisei. Larguei a câmera pra sentir de corpo todo.
“Isso não começou comigo
Começou bem antes
Mas hoje seguimos em pé
Para existir um futuro adiante”1
É saber que é um trabalho de formiga, coletivo, duradouro. Entregar para futuras gerações melhores condições das que teve. Não é sobre você, sobre o que você vive. É o que deixamos para o futuro.
Quantos lutam pensando no que vai deixar e não no que quer viver agora? Eu confesso que em todas as bandeiras que levantei, queria ver a solução pra ontem. Ânsia de pressa com urgência. Porque o mundo pede essa pressa por transformação. Ou sou eu?
Mas não. Pode ser plantar uma árvore mesmo sabendo que posso não comer o fruto ou descansar na sombra dela. Para que o futuro seja melhor do que o que vivemos hoje. Simples assim.


Com amor, e ansiosa pra viver outras vidas em breve,
Quem escreveu esse trem?
Oi, sou a Lanna. Jornalista por formação, comunicadora desde sempre. Viciada em chocolate, macarrão e curry. Viajante desde 2017 e escritora desde que aprendi a rabiscar cadernos. Eu não dispenso uma boa conversa com desconhecido, e adoro questionar as pessoas como elas enxergam a vida. Política se discute, política se vive.
Gosto de escrevinhar histórias que vivi, senti, e ouvi por esse mundão véio sem porteiras. Agora, numa jornada -insana- de Portugal a China por terra. Bora nessa? Se achegue mais, puxe uma cadeira, me conta sobre você ✉️
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Peço perdão, mas eu esqueci como era a letra da música que ecoava naquela rodovia. Essa é minha releitura.
Perdi o amor da minha vida no domingo, por um acaso esse amor tinha 4 patas e era dourada. Estou num processo de luto dificílimo e até então totalmente desconhecido, pois nunca tinha perdido ninguém verdadeiramente próximo. Ler suas palavras que chegaram a mim através deste cartão postal me fizeram esquecer por alguns momentos da minha perda e queria te agradecer por isso. Ps: ao ler este texto lembrei de Meu Bem, aquele doguinho que te acompanhou na sua peregrinação sozinha e o quanto vc foi respeitosa com aquele ser maravilhoso. Aquilo me emocionou tanto. Um abraço
Oi Lanna! Que legal descobrir que você tem uma newsletter. Te acompanho pelo insta desde logo antes de começar a viajar há mais de 4 anos, mas esse foi o primeiro texto seu que li (fora algumas legendas do insta) e quase que me emociono com a sua sensibilidade. Uma vez, por acaso, peguei carona com tios seus na Chapada Diamantina e foi o máximo, falamos bem de você e do Richard hahah animada pra acompanhar o que vem por aí nessa próxima grande aventura enquanto eu, daqui desse lado, paro um pouco de viajar, buscando descanso e permanência depois de anos testando várias vidas. Mas vou seguir viajando através de vocês. Desejo muita proteção e bons ventos!! 🍃🌬️