20 | "Se eu não brincar, enferrujo"
Estamos todos nos despedindo, só não sabemos até quando.
📍 Ilha Grande - São Cristóvão (SE)
A casa de Madá fica lá pra dentro do mato na Ilha Grande, perto de São Cristóvão (SE). Ao atracar o nosso barco na entrada da ilha, uma pequena igreja branca nos recebe. Na orla do rio, centenas de caranguejos dançavam seguindo o movimento do rio.


Saltamos do barco com o sol castigando as costas. Começamos a andar numa pequena picada de burro que nem moto entrava. Passando por dentro de alguns terrenos e casas para conhecer a pessoa mais famosa da ilha. Aquele tipo de fama leve, em pequena escala, de quando muitos querem bem esse alguém.
Ao passarmos pelo quintal de uma casa, perguntamos se Madá estava, “ela chegou tem pouco tempo do hospital, tá lá na casa dela”. Seguimos trilha adentro até a última casa, rodeada de árvores, plantas, flores, como se elas abraçassem e protegessem quem mora ali.
Madá estava com um vestido fresquinho sentada na cadeira de balanço. Levantou o pescoço e já nos recebeu com um sorrisão no rosto. O motivo da visita era esse. Nos contaram que ali tinha uma senhora que adorava receber forasteiros, prosear. Não marcamos hora e nem nada, chegamos sem avisar, ela não teria como receber recados do mundo lá fora.
Assim que chegamos, reconheceu o barqueiro que nos levou e deu um puxão de orelha nele. Tinha quase um mês que ele não a visitava. Logo começou a nos contar sua história, a história da ilha. Tem 78 anos, cresceu ali naquele mesmo terreno, onde também criou seus filhos.
Madá diz que a ilha foi povoada assim, onde indígenas e escravizados fugidos se escondiam para viver suas vidas em paz, “longe da bagunça que o mundo fazia”. O Rio Vaza Barris já foi palco de grandes batalhas históricas. A primeira que se tem registro é do Cacique Serigy liderando um exército de pessoas contra os portugueses por mais de 30 anos.
Ela diz que até já cruzou o rio para viver em Pedreiras, um povoado grande com acesso por estrada, mas não gostava nem um pouco do agito. Que, para mim que sou de São Paulo, estava longe de ser o adjetivo que eu usaria. Era tão tranquilo quanto um cochilo na rede num domingo pós-almoço.
- Acredita que eu tinha que comprar tudo? Até um punhadinho de hortelã se eu quisesse fazer chá - disse indignada.
“Ôh se acredito, Madá, ôh se acredito…", pensei. Abri um fraco sorriso lembrando de todas as vezes que comprei tantos chás, inclusive aqueles que vem em sachê. Quando foi a última vez que fiz um chá da planta mesmo? Sem nem ser daquelas ressecadas? Quando tiver meu sítio, quero pegar do pé também.
Essa conversa nos levou para um tour no quintal, onde ela ia me falando o que era cada planta e para que elas serviam.
- Quando eu era criança, fiquei com “dor-do-ói”, que hoje acho que chamam de conjuntivite né? Minha mãe pegou essa planta aqui, tirou o leite que sai do cabo dela e pingou uma gota por dia no meu olho. Nunca mais tive.
- E como a sua mãe sabia?
- Uma vez veio uma mulher aqui pra nos ensinar coisas de saúde, e como ela viu que tínhamos muitas plantas, nos ensinou a usar elas. Eu era pequena, mas lembro de ter um caderninho e sair anotando tudo o que ela falava. Cada planta, o que fazia, como preparava. E na vida fui testando de tudo, provando umas receitas minhas. Esse é o meu hospital particular, minha farmácia, remédio do mato.
- E nessa ida pro hospital, te deram remédio de farmácia?
- Não tive como fugir, eles me deram na veia e eu fiquei toda zonza. Meu corpo não está acostumado, é muito forte pra mim.
- E agora, está bem?
- Bem demais. Não gosto muito dessas coisas de hospital, mas tem coisas que as plantas não resolvem. - respirou fundo, e continuou - Meu corpo já está se despedindo… até lá tô só esperando o próximo samba de coco.
Dança regional com muitos rodopios e batidas no chão com as pernas. Uma dança que exige muito - muito - esforço físico. E, por isso, perguntei:
- Eita! E você aguenta dançar samba de coco?
- Já dancei muito mais, na adolescência eu não parava quieta. Por isso pedi pra construírem essa casinha aqui na frente. Não posso ir até o samba de coco, então, quando tô animadinha, chamo o pessoal pra roda ser aqui no meu quintal. Se eu parar de brincar, de andar, de dançar, de rodar, de rir, eu enferrujo, sabe? Não posso parar!
Você não tem noção do quanto eu estava enferrujada, Madá. Você não tem noção. De certa forma, estamos todos nos despedindo, só não sabemos até quando.
Com amor, de quem voltou a pular corda pra não enferrujar,
Por motivos de ‘vou viajar com minha melhor amiga essa semana’, não tive tempo de gravar e editar o áudio dessa edição. Na próxima, retomo e adiciono o áudio dessa.
Antes de ir, aqui você consegue conferir uns textos e descontos de viagem!
Até o próximo Cartão Postal! 🍃
Que dom maravilhoso esse de escrever!
Parabéns, Lanna!
Deu até vontade de rever o vídeo dessa visita maravilhosa.
Obrigada.
História... de Vida