19| É melhor com poeira nos pulmões
Cê pode até ler, ver vídeos, mas será que basta? Será mesmo?
📍 Triunfo, Pernambuco | Novembro, 2023
A primeira vez nessa viagem que vimos samba de coco foi num museu em Aracaju, Sergipe. A longa viagem de carro do Projeto Sertão Adentro começaria ali, no menor estado do país, um beiço do Nordeste, que pouco sabia até pisar lá.
No Museu da Gente Sergipana (recomendo!) as paredes tinham palavras rabiscadas. Palavras que não estavam no meu vocabulário, desconhecia até a pronúncia de algumas.
Papeira é caxumba;
Gabiru é rato grande;
Sumítico é pãoduro;
Gazear é matar aula;
Pracatinha é sandália de couro;
Concho é vaidoso;
Nica é moeda;
Aleive é calúnia;
Aviar é apressar;
Boga é bolha na pele;
Bigu é pegar carona;
Brôca é pessoa desatenta;
… e dezenas de outras.
Em uma das salas havia um tablet com diferentes tradições e festas dessa região. Fiquei passando o dedo na tela, me divertindo com cada uma. Reisado, Cacumbi, Bacamarteiro, Barco de Fogo, Parafuso, Lambe Sujo e Caboclinho.
Entre elas, samba de coco. Já tinha ouvido falar, mas lá no meu canto do sudeste a gente fica só no “ouvir falar” mesmo. Li a história e vi como ele era celebrado em vídeos, pessoas dançando em cadência, com batidas de pé no chão, lindo de assistir. Até me tirou um sorriso ou outro.


Dias se passaram, vi uma apresentação de samba coco na praça de Piranhas, Alagoas, para os turistas que, como eu, passavam por lá. Tablado de madeira na praça principal ecoavam os passos firmes dos dançarinos enquanto pessoas em volta apontavam suas câmeras.
No centro dos olhares, os 10 dançarinos saltitantes, com roupas coloridas combinando, pulando em sincronia. Ensaiados, coreografados milimetricamente. As pernas se mexiam até sozinhas de tanto praticarem. Fiquei hipnotizada com a velocidade dos movimentos e as batidas ritmadas. Meus pés nem se atreveram a invadir a perfeição sonora deles.
Achei que ficaria por isso mesmo, essa seria minha amostra grátis de samba de coco, meu aperitivo. Não esperava ver o samba de coco brotar, despretensioso, contagiante no meio de uma festa.
Estou em Triunfo, a cidade mais alta e mais fria de Pernambuco. Fomos convidados para uma festa que teria a alguns quilômetros dali, perto do Pico do Papagaio, no Quilombo Águas Claras.
Chegar ali foi um tal de pergunta aqui, bate naquela porta pra ter certeza, erra e dá a volta. Chegamos e nos deparamos com dezenas de carros que “subiram da cidade” para ir na tal festa. “Eita, Triunfo deve ter ficado vazia”, pensei.
Crianças corriam pra lá e pra cá disputando espaço com adultos que dançavam em frente a um palco improvisado, embaixo da grande sombra da árvore matriarca. Músicos revezavam entre ritmos mais tranquilos enquanto as pessoas se amontoavam nas barraquinhas de comidas que nunca provei, e muitos nem tinha ouvido falar.
Uma delas era o mungunzá, que, na minha cabeça, era aquele doce com sabor de festa junina também chamado de canjica. Nera nada. Pedi um mungunzá e ganhei um prato que nada se parecia o que imaginei. Tinha até couve e linguiça no meio, acho que vi um bacon.
Confirmei se era mungunzá, “é isso mesmo", responderam após olharem meu prato. Sorri da gafe paulistana e fui no meu cantinho comer. Eu - a pessoa que não gosta do sabor de carne vermelha - engolia cada garfada para não ser desrespeitosa e dar uma da paulista-quase-vegetariana que sou. Foi assim que aprendi que mungunzá salgado existe, tem sabores explosivos na boca… e pode ter carne.
Distraída, observando o vai e vem, com meu pratinho na mão, meus ouvidos aguçaram quando começaram a tocar um ritmo que meu corpo identificou. Percebo um movimento se formar ali do lado, embaixo da grande árvore. Em instantes, que parecem ter sido milésimos, as pessoas abandonaram tudo que tinham em mãos para se reunir aos demais na pista de dança improvisada.
E, em sincronia não combinada, começaram a dançar e cantar samba de coco. Repetiam em coro as frases ditas pela cantora, batiam os pés no mesmo ritmo, mesmo o corpo fazendo movimentos diferentes.
Todos unidos no mesmo compasso para levantar a maior quantidade de poeira possível. Ofegantes, dando gargalhadas. Eles estavam ali apenas vivendo, se divertindo, dançando samba de coco.
Quando seus pés se mexem, não resta outra opção: dance. Dancei. E por mais que eu demorei um pouco pra pegar o ritmo, não tive vergonha, ninguém ali se importava, porque o objetivo não é estar totalmente sincronizados. O foco não é a perfeição, acho que samba de coco é o oposto disso, é mais sobre sentir a cadência produzida com muitos pés.
É diferente de ver a cultura em uma explicação de museu, ou em uma apresentação de praça: é sentir ela pulsando dentro de você que até te coloca pra viver junto. Acho que é só quando você suja a roupa de mugunzá, sente o pulmão encher de poeira, que cicatriza na memória. Não tenho mais como esquecer.
Minhas mãos não tiveram nem sequer tempo de pensar em pegar a câmera no bolso, porque o corpo todo queria viver para além do registro.
Aprendi muito vendo a história e os vídeos sobre o samba de coco em Sergipe, foi legal ver na prática ali na praça em Alagoas. Os museus e essas apresentações são importantes, essenciais para tocarmos com as pontas dos dedos a vida, a cultura que está longe dos nossos olhos.
Mas nada - NADA - se compara a ver o samba de coco surgir entre as pessoas, tomar conta do corpo da cabeça aos pés. Assim como falei no meu primeiro texto aqui: eu viajo pra isso, pra sentir o mundo de corpo inteiro.
Que você, sempre que possível, sinta o mundo de corpo inteiro também.
Com amor, e pés inquietos,
Primeiro texto citado:
Mural de avisos
Enquanto me preparo para uma longa e intensa viagem nos próximos meses, vou enviar textos escritos em viagens antigas, de diferentes partes da América Latina. Como esse daqui. Por isso, Cartões Postais chegarão a você “atrasados” na linha do tempo. Essa é a graça de enviar cápsulas do passado, sem a urgência do agora. Espero que gostem!
Roda de coco é vida 🥹 Me lembrei das vivências com carimbó no Pará, a mesma sensação!
Sempre que vou ao nordeste tenho essa sensação de conforto e pertencimento. Sons, cheiros e cores me atraem, me senti em “casa” com seu postal.