📍 Breves, Pará | Janeiro, 2019
Dona Benvinda tinha um nome peculiar. Não, não era a pessoa mais receptiva que conheci. Já recebeu tantas visitas que benzia a casa antes da entrada de qualquer estranho, e logo após a saída também. Melhor se precaver, sabe.
Notícia correu solta pelos igarapés da comunidade de Mãe Cué de dois estranhos que estavam perambulando por lá. Fomos convidados a visitar a casa dela, a pessoa mais velha da região de Breves no Pará.
Assim que paramos a rabeta (canoa de madeira com pequeno motor), ela saiu do meio da mata com ramos de um limoeiro e outras plantas que meu olfato de cidade não me permitia identificar. Por mais que eu tentasse, não conseguia.
Conversa vai, conversa vem, mais café?
Ela nasceu, na verdade, láaa do outro lado do rio. Dando ênfase no “lá”, porque pra ela era muito longe, mesmo sendo a um punhado de metros. Hoje é uma área de proteção ambiental, e por isso foram todos convidados a se retirarem de lá com o que podiam carregar. “Até os meus animais volta e meia ficam fazendo barulho lá na ponta querendo voltar pra nossa terra, pra nossa casa”, desabafou.
O conceito de casa pra ela se perdia. Conta que já teve muitas, mas que aquela foi a que mais ficou. Teve que construir muitas casas, inclusive. A mãe dela quem a ensinou de tudo, desde cozinhar, a benzer, caçar, parir, costurar, plantar, remar, pescar. Tudo com as mesmas duas mãos que colecionam décadas. As mesmas que fizeram tantos cafés na nossa curta visita por ali.
A mãe dela era escrava em uma fazenda perto de Santarém quando engravidou de Benvinda. Desesperada com a ideia do seu bebê ter o mesmo destino que ela, fugiu para a terra prometida de Cachoeira Porteira, um grande quilombo. Foi-se com barriga e tudo para o meio da selva, cruzou rios e correntezas, passou noites sozinha na floresta Amazônica carregando a filha no ventre.
Lá encontrou a comunidade onde até hoje mora Dona Benvinda, que agora tinha o nome explicado. Ali, naquele lugar, ela poderia ser Benvinda.
A escravidão está há poucas gerações de nós. A escravidão é onde Benvinda foi gerada e nasceu1.
Dona Benvinda tinha o rosto marcado pelo sol da Amazônia, as rugas pareciam mais caminhos de rio que se encontravam nos olhos já cansados. Deve ser por isso que preparava tantos cafés. Já era a terceira xícara de café, meu coração anunciava que tinha que parar senão ele iria começar a sair do lugar. Mas não tinha como recusar quando Dona Benvinda passava por mim com o cheiro de café recém-passado.
A boca desdentada não negava um sorriso e também nenhuma verdade. Ela me chamava carinhosamente de forasteira enquanto contava histórias de sua vida. Tinha que me concentrar para saber a ordem dos fatos. A linha do tempo se misturava conforme a memória dela a lembrava de um novo causo.
Isso foi antes ou depois da morte da mãe? Quando tentaram prender ela por comer um jabuti, ela já era mãe? O filho dessa história é o que ela adotou ou o que se foi pra nunca mais voltar?
Quem é de cidade grande tem a cabeça de que no interior nada acontece. Tudo é muito parado, a vida é monótona. Basta escutar - realmente escutar - por 15 minutos para saber que tudo acontece, só que acontece em um volume diferente. Não é alto e escandaloso, é acompanhado de cantos de pássaros e do som da água corrente do rio.
Por curiosidade ou inocência, perguntei quantos anos ela tinha. Ela ficou confusa por um tempo, não me respondeu de bate pronto, só me confidenciou em voz baixa que não sabia. “Eu não sei conferir, só sei conferir até 10”.
Naquela região conferir é contar, me ajudou um morador da comunidade vendo que fiquei confusa com a resposta. Benvinda se levanta e vai até uma caixinha de papelão que pela aparência já havia atravessado muitos rios e igarapés. Dentro tinham documentos e fotos espalhadas, um arco-íris de cores entre sépia e preto e branco, com mordidas na borda que o tempo deu.
Me entregou uma certidão dizendo que fez quando ela ainda era uma menininha, uns 3 ou 4 anos. Lá constava 89, então ela vestiu a camisa dos 92 rindo dizendo que nem sabia o que viria depois desse número.
Imagine só que doido, uma vida sem ser contada por anos, e sim contada por uma... vida.
Com amor e desejo de um feliz ano novo uma leve vida pra nós,
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A escravidão não acabou em 1888, isso aconteceu apenas no papel. A informação não era tão rápida e muito menos a fiscalização. Os “patrões” continuavam com a prática por baixo dos panos, inclusive até os dias de hoje.
Que história linda Lanna!! Amei sua narração, parece que me tele transportei para onde você estava com aquela senhora!!
Você escreve de maneira leve e cativante. Foi um prazer adentrar pelo lar de dona Benvinda através de seus olhos.
Um abençoado e leve Ano Novo pra você