📍 San Pedro de Atacama, Chile | Novembro, 20241
Eu não sou uma pessoa religiosa ou espiritual. Não sou a viajante que vai ficar falando de chacras na aula de yoga, eu não entendo, não sinto. E engraçado que, por viajar sozinha por tanto tempo, as pessoas me rotulam que sim, entendo e sinto. Mas não consigo ser. Insistem em me presentear com cristais, mas isso chega a me dar até agonia, gosto deles na natureza.
Talvez por ser jornalista e ter estudado ciência política, o “só” sentir nunca é visto com bons olhos. A vida é mais mecânica, mais prática, mais útil. Sentir é muito abstrato.
Só que a viagem vem pra tirar o nosso chão e nos fazer sentir mais. Querendo ou não.
Los Muertos
Acordei cedo no Dia de Los Muertos pra ir ao cemitério de San Pedro de Atacama. Cansada, ainda sem ar da altitude. O sol às 7h30 já avisava que minha pele iria sofrer.
Alguns países celebram a visita dos mortos, um dia para festejar e guiar os falecidos queridos até nós. Os que se foram vem visitar os vivos, todos juntos, cada um com sua família.
Sai na rua e segui três rapazes carregando uma cruz branca, um palpite pouco sutil de que, talvez, eles estivessem indo para o mesmo lugar que eu. E estavam. Na porta do cemitério, tendas e mais tendas de todas as flores e arranjos que você pode imaginar. Os perfumes invadiam meu pulmão e me distraiam da areia que entrava junto.
Ao lado das flores, brinquedos, doces, salgados, roupas, itens de cozinha, gel pra cabelo, perfumes, pentes, tudo o que você imaginar. Estranho, por que estariam aqui?
Decidi comprar uma flor branca, para não ser a única a entrar no cemitério sem nada em mãos. Todas as lápides enfeitadas, coloridas. Escolhi um banco, sentei segurando minha flor branca e comecei a observar o que faziam.
Pessoas andavam pra lá e pra cá com baldes de água, panos e vassouras. Limpavam as lápides, trocavam, pintavam, retocavam, decoravam. Aguavam os montes de terra como se quem deitasse ali embaixo estivesse com sede. Ou como se fossem sementes prontas pra germinar a vida.
Colocavam brinquedos, bandeiras de times, doces, salgadinhos, fotos de amigos, cartas. Itens que eu não me lembro de estarem associados a cemitério, a morte, mas, ali, faziam todo sentido.
Gerações misturadas, cada um no seu canto, com seus amados, amando alguém que já se foi.
Fiquei horas ali sentada só observando o ir e vir. Os que chegavam atrasados e a família fazia piada, os que entravam e saíam calados, os que silenciosamente arrumam diversas lápides, os que enxugavam discretamente os rios que desciam dos olhos. Cada um no seu mundo, mas juntos.
Oi, tô com saudades
Ou, “hola, te hecho de menos”
Meu avô tinha falecido há poucos anos quando comecei a viajar sozinha pela América Latina. Éramos muito colados, a neta curiosa que ficava fazendo mil e uma perguntas da vida dele, a única neta que gostava de futebol e torcia com ele, a que fazia cara de piduncha pra ele comprar mais gibis da Turma da Mônica e ele sempre comprava.
Às vezes fico fantasiando o que meu avô acharia da neta viajante que ele tem hoje. Até onde ele me acompanhou na jornada da vida, eu era estudante de jornalismo, trabalhando numa revista de economia e tinha acabado de passar numa entrevista pra ser contratada na TV ALESP. Agora, sete anos na estrada vivendo com mochila nas costas, fazendo vídeo e texto sobre viagens, até hoje não ganho o que ganhava naqueles tempos. Ele iria odiar essa parte.
Por outro lado, hoje eu sou uma pessoa tão diferente que gosto de acreditar que nos daríamos melhor. Eu aprendi falar espanhol, língua que ele ouvia de uns familiares e iria gostar de ter uma neta hispanoablante. Eu gosto mais de mato, natureza, de plantar, sei que poderia aprender muito com ele.
Ele amaria o homem que divido a vida, meu dengo. Os dois amam música sertaneja moda de viola, gostam de um paiero2 e cachaça, carne de porco deve ser uma das favoritas de ambos. Nem chegaram a se conhecer, mas sei que iriam se dar bem. Eu sinto.
Lembrei tanto dele que aquela flor branca se transformou em saudade na minha mão. Segurava ela, apertava, cheirava, olhava, virava, comecei a chorar.
Eu chorava e ria na mesma medida, confusa com os sentimentos que surgiam. Porque a saudade é doce, depois de ser muito muito muito amarga. Tão amarga que pode amarrar a vida igual caju amarra a boca.
Com o tempo, a vida nos lembra de voltar a viver e o luto se transforma nesse buraco cômodo. Deixa de ser dolorido, azedo, e vira uma brisa de boas e doces lembranças. Mas que sem avisar vira ventania e, quando vê, você está zonza de novo.
Um dia para quem ficou
Já estava um bom tempo naquele banco, precisava andar, ver as pessoas pra me distrair de mim. Sai perambulando por outras partes do cemitério, cumprimentando silenciosamente quem passava, vendo vó e neta limparem uma lápide, crianças deixando desenhos para tios queridos, pessoas comendo cachorro-quente com um cooler de Fanta Laranja. Curioso como cada um vive seu luto.
Comecei a andar até chegar no fim do cemitério, em uma área aberta. Me deu vontade de falar, olhei pra rosa e comecei a falar da minha vida pro meu vô. Pela primeira vez, em espanhol.
Ele não me viu em muitas fases da minha vida, então eu contei pra ele. Contei dos meus medos, dilemas de vida, trabalhos, de viagens, do meu amor e do que vejo pro meu futuro. Falei de como está minha vó, de como sentimos falta dele e sempre lembramos das travessuras que ele aprontava.
Dei risada de como ele iria puxar minha orelha com algumas coisas. Chorei porque queria que ele estivesse aqui pra puxar minha orelha de verdade.
Como falei, não sou uma pessoa religiosa, não sei se as pessoas estão ali com a gente, se elas um dia voltam, o que acontece. Eu não preciso saber o que acontece, separar um dia para lembrar delas já fez bem pro coração e é mais sobre isso do que sobre o que “realmente” acontece.
Entre sorrisos e soluços, alguém se aproximou de mim e me ofereceu um copo de Fanta Laranja. A tal família do cachorro-quente me viu chorando sozinha e me convidou a se juntar a eles. Me aproximei enxugando as lágrimas e recebi abraços de desconhecidos.
A lápide que eles estavam em volta era da esposa de um deles. A irmã dela viajou desde Curicó, quase 2.000km para estar com ela nesse dia. Uma reunião familiar que juntou pessoas de 5 cidades do Chile, que agora dividem guloseimas e falam sobre como ela era teimosa e adorava pintar o cabelo sozinha.
Uma grande família que se reuniu ali para comer as comidas favoritas dela, cachorro-quente, Fanta Laranja e todos os doces do mundo. Tanto que levaram decoração de balas para deixar ali com ela. Dei risada deles contando histórias dela, de quando ela pedalou ali no deserto procurando uma barraquinha de cachorro-quente que estivesse aberta de noite, ou de quando abriu uma conta numa doceria de tanto doce que ela pegava. O marido riu agora, mas falou que na época ficou bravo.
Ela se foi há apenas 8 meses, pouco tempo para uma cicatriz como a do luto começar a curar. E talvez nunca se cure de fato, sempre fique aquela cicatriz. Mas, nossa, ter uma data assim para relembrar, dar risada com pessoas amadas que também amavam quem se foi, é um bom começo.
Talvez o Dia de Los Muertos seja um dia para Los Vivos.
No fim, não me importo pra quem seja, eu sinto.
Sei que me falta um pouco de tradição, esse sentimento de fazer parte de algo maior. De me juntar, de ver os outros ao lado, mesmo que cada um ao seu ritmo e mundo. A vida de quem não tem crenças que dão significado a vida ou a morte é mais oca. O silêncio faz um eco mais longo porque não tem ninguém ali do outro lado.
Essas religiões e tradições te dão aquele sentimento de fazer parte de algo maior, que é o que todos buscamos. Por mais que você esteja sozinha fazendo algo, você sabe que tem outras pessoas fazendo também. E como não tenho nenhuma crença ou religião, vou montando a minha. Um grande retalho que vivi e senti pelo mundo. Comecei a tradição do dia 2 de novembro, o dia oficial de fofocar com meu véio e com quem mais um dia não estiver por aqui.
Até ano que vem, vô 💛
Ou, hasta pronto, abuelito 💛
Com amô e boas doses de fofocas,
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Texto escrito em 3 de novembro, precisou de um tempinho para aparecer por aqui.
Paiero como eu chamo, mas o “certo” é palheiro, cigarro de fumo de corda enrolado na folha de milho seca.
Bateu forte aqui! Estava começando a escrever sobre a minha vó dia desses, e não consegui continuar. Me vi completo no seu texto
Fico imaginando também como seria se minha avó que partiu meses antes de eu retomar minha viagem conhecesse a Gabi e soubesse dos lugares e histórias que vivi!
Acho que no fundo a gente não caminha só por nós, mas por eles também!
Valeu amiga 💚
Eu estou remontando minha Vida pessoal. Sou religioso , mas penso exatamente como você pensa de seu querido Avô. Obrigado por compartilhar, foi meu primeiro ano no dia de Finados com meu pai que já se foi a 6 anos.