14 | Rio das Almas
A minha fusão de um pouco de ciência, um pouco de poesia (agora tem narrativa!)
📍 San Pedro de Atacama, Chile | Novembro, 2024
Olhar o céu não era algo que eu fazia com frequência. Só quando tinha um pôr do sol legal pintado nas nuvens que berrava minha atenção. Acho que demorei para enxergar o céu.
Por muitos anos fiquei sem saber qual era a fase da lua, porque o teto do prédio e as janelas com tela não me permitiam buscá-la. E mesmo se tentasse, o céu de noite era alaranjado demais para encontrá-la. Alaranjado porque é quando a grossa camada de poluição reflete as luzes amareladas da cidade. Pois é, eu sei.
Sigo demorando pra encontrar as constelações e diferenciar estrelas de planetas. Demorei anos para saber que a lua cheia de fato iluminava noites escuras e que ela nasce linda no horizonte. Ou, sendo bem sincera, eu só não me importava mesmo, não mudava em nada na minha vida.
Aos 25 anos, isso mudou. Tatuei a lua para me lembrar que o ciclo eterno lá fora também acontece dentro de mim. Me lembrar de respeitar e ser gentil com os meus ciclos.
Continuo entendendo pouco do céu. Por sorte, os lickan-antays me mostraram que eu não preciso entender, só preciso olhar.
“Para saber andar na terra é preciso antes saber andar nas estrelas”, sabedoria lickan-antay.
Contexto | Lickan-antay é o povo originário do norte do Deserto do Atacama (Chile), também chamados de atacamenhos por um erro de comunicação com os espanhóis. Disseram “Accatcha”, que em kunza significa “parte norte” ao informar os invasores onde estavam, os espanhóis acharam que eles eram “atacama” e assim ficou. Lickan-antay significa "povo da terra", mas pra mim poderiam muito bem serem chamados de povo do céu.
Pó de estrela
É impossível vir à San Pedro de Atacama e não se maravilhar com o céu abarrotado de pontos brilhantes que dançam. Daqueles de deitar no chão da praça pra observar e caçar estrelas-cadentes. Juro, já esgotei meus pedidos, agora só peço para ver mais estrelas cadentes.
Uma curiosidade aleatória, o Deserto do Atacama é o melhor lugar do mundo para ver o céu. Ou deveria dizer estudar? Isso por uma mistura de grande altitude em relação ao nível do mar, a falta de umidade e ausência de chuva que geram poucas ou nenhuma nuvem, uma tal de corrente de Humboldt, mais fatores científicos e outros blablablas.
Não quero focar em explicações teóricas. Aqui vai ser um pouco de ciência e um pouco de poesia.
Afinal, como ouvi no Deserto do Atacama:
“A natureza não tem poesia, poético é como nós olhamos e sentimos ela”.
Ninguém olha o céu da mesma forma, principalmente povos ancestrais e a ciência. Pra quem é do segundo, o céu é algo a ser estudado, desvendado, e até manipulado. E, quem sabe um dia, habitado.
Em tantos estudos sobre o céu do Atacama, li que somos pós de estrelas. Minha cabeça deu um nó. “Deve ser poesia”, pensei. Tive que ler um texto em espanhol feito para crianças que explica o porquê dessa frase ter base científica. Eu juro que tento só contemplar, mas meu cérebro ainda não me permite por inteiro.
Em resumo muito simplista, muito dos componentes que tem nas estrelas, do que elas são feitas, nós também somos feitos. Temos os mesmos átomos em nós, em nossos corpos, que a ciência aponta que vieram de explosões das estrelas.
Você pode acreditar na teoria da vida que quiser, eu não tenho certeza de nada, nem quero ter e muito menos te convencer. Se me perguntarem, vim das estrelas e é pra elas que eu vou voltar.
Rio das Almas
Fazer conexão entre estrelas é humano, é algo de quem quer nomear coisas para que o mundo tenha um pouco mais de sentido e de direção. As chamadas constelações de signos são as que mais conhecemos. Mas, calma lá, se tem céu no mundo todo, cada um brinca de ver as estrelas como bem entender.
Os lickan-antays veem o céu como outra terra, um reflexo de nós aqui. Veem no infinito estrelado o que eles veem aqui do chão. Existem constelações de lhamas, raposas, chaka
na1, rios, a grande ave condor, uma serpente. É uma forma de enxergar o céu que só vê quem vive nessa região ou no mesmo bioma.
Detalhe, eles enxergam essas formas na Via Láctea na ausência de estrelas, e não na conexão entre elas. É nos espaços em preto. Sim, o céu lá é indescritível nesse tano.
Assim como a terra dá seus sinais, o céu também dá. Um cometa pode ser aviso de um grande conflito, uma estrela-cadente pode ser um bom sinal ou mensagem de alguém que te ama.
O que tem no seu mundo que pode ser visto no céu? Como seria uma constelação de quem nasceu em grandes cidades, como eu? Ou dos Pataxós no sul da Bahia?
Mais que isso, o céu é o nosso destino. A Via Láctea se chama Hatun Mayu. Significa Rio no Céu, ou Rio de las Almas, um rio para onde começamos uma jornada de fim da vida. Para, no fim, virar uma estrela. Cada estrela é um antepassado, que um dia estava aqui conosco e agora está lá em cima.
O céu não é origem, é destino.


Um pouco dos dois mundos
Eu sou uma grande salada mista. Não tenho religião, sou um pouquinho de cada uma que já vivenciei. Não tenho comida favorita, adoro misturar macarrão com molhos indianos. E como essa pessoa que ama misturar mundos, fiz minha mistureba particular do céu.
Sinto que o mundo moderno da ciência tem muito o que aprender com a poesia do não saber. A nossa insaciedade de perguntas e respostas nos tira cada vez mais o simplesmente observar. Sem questionar, sem teorizar, sem ter que provar nada. Eu tenho muita dificuldade em não saber o porquê das coisas, em apenas admirar e sentir.
Em um convite inusitado no Atacama, fui convidada a olhar o céu e imaginar novos desenhos, como em nuvens. Pra quê identificar onde fica a constelação de aquário se você pode simplesmente imaginar um céu que faça sentido pra você? Que te guie? Dar novos nomes e contornos? “As estrelas não sabem que elas têm nomes e conexões, crie.”
Agora, olho pras estrelas e vejo nelas minha origem, mas não de forma grandiosa, e sim de forma ridiculamente minúscula, conectada. Vejo sinais do meu presente, onde eu sei que se moro e estou num lugar onde vejo as estrelas dançarem no céu, estou no (meu) caminho certo. Enxergo meu destino.
Fazer do céu um lugar que sempre vou querer voltar. E foi depois disso que resolvi escolher uma estrela e chamá-la de vô. Até aproveitei o Día de los Muertos para criar um ritual pra mim e, quem sabe, uma nova relação com a morte. Isso é assunto pra semana que vem…
O céu nunca mais vai ser o mesmo. Nem eu, afinal, eu agora sou pó de estrela e, quando me for, vou voltar a ser uma. Eternamente criando misturas de mundos.
Com amor, do pó de estrela e futura dançante no céu,
Links
O universo dos nossos avós, por Alma ETNO
Leyenda Estelar en el Desierto de Atacama, por Constelaciones Indígenas
Dicionário Kunza, por Memória Chilena
Passando o chapéu
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¡Gracias!
Obrigada pelos comentários e respostas via email no último Cartão Postal. Separei um tempo, li e respondi tudo com muito carinho. É delicioso ler vocês. Obrigada 💛
Símbolo sagrado para os andinos de conexão com a natureza, a vida e a morte.
Ah, que lindo este post, Lanna! <3 Que texto, que experiência - tudo inspirador! Dá sempre muito alento e força vir aqui.
E achei uma sincronicidade porque tô aqui planejando por onde começar a nova parte do mochilão ano que vem, e Chile - especialmente San Pedro de Atacama, por conta do céu - eram uma prioridade. Agora, sei que é ali. Quero muito ver esse céu também, é um sonho antigo!
Beijo!
Show e com o áudio, traz mais inclusão, Abraço a vocês