Já tem uns bons meses que a expedição Sertão Adentro terminou e muitas, muitas conversas aconteceram que eu quis eternizar. Mania essa de não querer esquecer, registrar conversas de ponto de ônibus. Espero que você goste desses pequenos encontros em forma de Cartão Postal.
São encontros que tive com pessoas apaixonadas por onde vivem, por onde nasceram. Carregam no olhar o brilho de falar do rio, da caatinga, da arte, da vida. Essas palavras me marcaram de alguma forma e eu escrevi, mas não estava no modo-compartilhar. Então, guardei. Até agora. Espero que goste!
Quando terminar de ler, me conta o que acha deste formato de news? Pode ser que eu faça o mesmo com outros textos aqui engavetados. Ou não. Me diz o que tu acha!
Na beira do Rio São Francisco
Outubro - 2023 | Piranhas - AL
Marcamos de nos encontrar às 7h nas margens do Rio São Francisco. Mesmo hospedados no centro de Piranhas, a descida até a margem já aquece as pernas. Ele estava lá, deitado no barco, nos esperando. Balançando de um lado pro outro como se o corpo dele fizesse parte do rio.
José é um homem com cabelos pretos e umas mechas brancas, camisa preta até as mãos e um chapéu para se proteger do sol. Pesca desde os 11 anos e isso lhe deu uma conexão única com aquelas águas. Nos levou para conhecer o Rio São Francisco pelos olhos dele. Pelo menos o pouco que dava.
Para quem nasceu ali, aquele rio não era um rio, era casa e alimento, era mãe. Passamos o dia todo ora navegando, ora nadando, admirando cada pedacinho daquela doçura de água. O dia já estava quase acabando quando ele nos convida:
- Posso mostrar pra vocês minha praia de rio favorita daqui?
Como negar um convite desse? Lá chegamos, numa cabana de madeira com direito a rede e vara de pescar. É o recanto que ele criou quando quer se desligar do mundo lá fora, ficar comendo peixe com farinha e umas frutas que leva.
Chegou a ficar 3 meses ali com a esposa na pandemia, sem saber o que acontecia do outro lado da margem. Voltou para a cidade contrariado, queria continuar dormindo embalado pelo seu rio. Em silêncio, só com o som de ninar das águas lá fora. E começou a contar os causos que já viu por ali:
- Teve uma vez que um cara lá de São Paulo quis dormir aqui. Combinei com ele de deixá-lo aqui num dia de tarde, e que voltaria antes do almoço doutro dia. Não tem sinal de celular e nem internet, combinado é combinado. Cheguei aqui, o homem tava sentado na beirada da porta. Os olhos tavam fundos, falou que não dormiu nadinha. Que achou a rede desconfortável, que isso, que aquilo. Falou que teve medo…
- Medo? Medo de quê? - interrompi.
- Do silêncio, ficou com medo porque tava tudo muito quieto. Acredita nisso? O cara me vem de São Paulo e vem pra cá pra ficar com medo! É doido mesmo, só pode…
Quer ver um pouco desse lugar? Tem um trecho no final desse vídeo.
“Me coloque pro rumo de casa”
Outubro - 2023 | Povoado de Malhada de Caiçara, Paulo Afonso - BA
Maria Bonita nunca soube que leva esse apelido pelos livros de história, morreu como viveu: sendo Maria de Déa. A casa onde cresceu de Déa fica num bairro afastado. Povoado Malhada de Caiçara, 40 km do centro da cidade da qual pertence, Paulo Afonso-BA.
O caminho é longo. A casa de taipa se confunde com a cor da estrada de terra no horizonte. Avermelhadas, secas. Só não passa desapercebida porque tem uma placa que indica que ali é a “Casa-Museu Maria Bonita”. Os tantos grandes cactos - que meus olhos paulistas julgaram ser - Mandacarus em volta, recebem de braços abertos os turistas curiosos.
Lá fora o silêncio era tanto que só ouvíamos o som do chocalhinho que fica no pescoço das vacas, as galinhas ciscando e resmungando algo, o vento assobiando gentilmente.
Maria saiu pela porta de madeira carcomida pelo tempo. Não a de Déa, nem a Bonita, mas a Maria, a nova guardiã daquela casa. Nos levou para conhecer os cômodos, mostrou as fotos nas paredes, contou histórias: “foi nesse banco de mais de 100 anos que Lampião dormia, ele e Maria Bonita se apaixonaram por aqui nesse quintal”. Dizia que boa parte do Povoado de Malhada de Caiçara é hoje parente de Bonita, “tudo sobrinho”.
“Bicha danada, corajosa. Ganhar o mundo, virar bandida”, opinava sobre Maria de Déa. Quando a câmera desligou, não queríamos mais ouvir as tantas histórias de Maria Bonita, queríamos ouvir quem é essa Maria que estava na nossa frente. Fomos perguntando dela, sobre como ela foi parar ali naquela casa, se tinha conexão com a de Déa, como era a vida dela por ali. Curiosidades que nem sempre o mundo de vídeo de internet quer ouvir.
A mão dela não negava que já viveu muitos anos, que sentiu muito sol. O pano amarrado na cabeça escondia os fios brancos que teimavam em escapar por todos os lados. Casada com um homem criado pelo pai de Maria Bonita, mas não disse se era irmão ou não.
Morou naquela casa e criou os 8 filhos ali, correndo pelo mesmo quintal que foi palco de tanta história. A história dela e a do Brasil. Hoje mora lá perto, mas mantém a casa histórica como registro histórico de quando o Povoado foi parar nas manchetes.
Eu olho aquelas paredes e quintal e imagino os grandes churrasco feitos por cangaceiros enquanto a mãe se escondia com as crianças num quarto. Ela olha para o mesmo quintal e vê os primeiros passos de algum filho, um outro ralando o joelho, outra correndo atrás das galinhas. A casa daquele jeitinho, desde a época de Maria de Déa, com alguns rebocos a mais para aguentar o tranco dos anos.
- E já foi visitar seus filhos que moram longe? - Perguntei para passar o tempo, que é quase estático por essas bandas.
- Já, mas num duro muito tempo não. - Respondeu olhando pro céu azul, sem uma única nuvem.
- Por quê?
- O que tá mais longe é o mais véi, tá lá pras banda de São Paulo. Eu não fico nem um mês lá, é um barulho que a cabeça chega a ficar zonza. Num tem sossego pros ouvido, qualquer coisa é dinheiro, tudo é longe, as pessoa te choca [tromba]. Fico querendo logo voltar pra minha terrinha. Ai eu olho pro meu filho e peço pra ele me colocar de novo pro rumo de casa. Volto e fico aqui.
“Aqui?”, pensei no baixo da minha urbanidade. Meu olhar confuso ficou perdido por um momento. Porque era muito tranquilo, tudo ali era tranquilo até demais. Olhava em volta e não entendia. Um lado meu achava estranho demais alguém escolher viver ali, onde a seca era brutal e as distâncias gigantescas. Já o outro lado gritava com o meu imaginário baseado em manchetes-catastróficas-dessa-região. Berrava que eu não sei o que é viver ali, eu nunca vivi. Tenho certeza que eu não duro aqui mais do que ela dura em São Paulo.
Assim como José não sai de perto do seu rio, Maria não quer sair de perto da sua terra de chão batido. Eu, por outro lado, já sabem… corro na primeira oportunidade.
Nos olhamos e sabíamos que não nos entendíamos. Eu não a entendo, e ela não me entende. Mas tudo bem, somos animais de biomas diferentes mesmo.
Meu pulmão não sabe o que é respirar a poeira da terra vermelha, ler e lidar com as mudanças do solo. Meu corpo não sabe o que é sentir o tempo passar segundo a segundo, ela não sabe o que é ter essa urgência constante na vida [para chegar a lugar nenhum]. Olhei para ela, sorrimos em silêncio. Nos entendemos sem precisar nos entender.
Clique aqui para ouvir a voz de Maria contando umas prosas.
Vilão heróico ou um herói vilanesco, escolha
Novembro - 2023 | Serra Talhada - PE
“Afinal, Lampião é vilão ou é herói?” Pergunta que tanto escutamos ao longo dos meses de gravação do Sertão Adentro. Comentários nos vídeos e posts discorriam com argumentos pra lá e pra cá do que é a verdade. Como se tivesse uma verdade única para tudo nessa vida. “Depende”, escreviam, mas não bastava, “escolhe um”, retrucavam.
Lampião nunca quis posto de herói ou de lenda, mas era conveniente para proteção. A história mais comum era a de que Virgulino abandonara a vida de artesão e sertanejo para vingar a “morte injusta” do pai nas mãos da polícia. Requer muita coragem mudar o rumo da vida que lhe foi ditado. História digna de um herói. Vida digna de um vilão.
Eu não sei dizer o que eu seria, o que eu faria se meu corpo vivesse naqueles anos com a mente e condições daqueles tempos. Ainda mais sendo mulher, que as opções desaparecem. Eu, Lampião e Maria Bonita não somos só de lugares opostos, mas de épocas muito diferentes.
Já Jesuíno Brilhante, um dos tantos cangaceiros que teve seu nome ofuscado pelas lendas de Lampião, era conhecido como Robin Hood. Ele não só roubava armas e dinheiro de grandes fazendas, dizem que ele esvaziava os estoques de comida e distribuía pelos povoados da região. Fazer isso nunca lhe rendeu muitas linhas da história.
Não temos muitas referências do que é um passado para além das guerras, das tragédias humanas. Como esperançar um futuro se nossa memória só nos lembra disso? Calma, não se engane. Jesuíno também não era todo “bom”, também matou, torturou, e deve ter abusado de um punhado de mulheres.
Um vilão heróico e um herói vilanesco. Qual é a proporção que dita quem é o quê? 1% de vilão já pode ser abominável? Cancelado? Se for 50 / 50, é o quê?
Humano?Quem dita o que é?“Passa o martelo, seu juiz, a internet quer sentenciar.”
PS: se quiser ler um livro sobre esse tema, recomendo muito o livro “Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço”, da jornalista Adriana Negreiros.
O corpo fala
Setembro - 2024 | Litoral Paulista
Dá para sentir o corpo tentando se adaptar quando mudamos de lugar. Meu cabelo começa a ficar com muito frizz em lugares úmidos, meu corpo começa a esfarelar em lugares extremamente secos. Fico mais cansada que o normal em lugares muito frios, meu nariz sangra na altitude.
Olho para as pessoas que lá vivem e o corpo delas não gritam igual ao meu, corpo teimoso que quis sair do seu habitat. Eles exibem cabelos sedosos quando moram na praia, pele reluzente mesmo no Atacama, correm de manhãzinha no frio, sobem barrancos com pesos nas costas na altitude.
Lembro de ler um relato que recebi no Elas Viajam Sozinhas sobre uma mulher do Rio Grande do Norte que foi viajar sozinha pela primeira vez e foi ao Paraná. Pediu um cachorro-quente de rua sem camarão, que era o normal na cidade dela. Descobriu que não era comum ali quando o atendente ficou horrorizado com o pedido, “mas é claro que não vai camarão, moça”.
Meu marido, goiano, acabou de descobrir - e achar um absurdo - que existe desumidificador de ar. “Lá no Goiás”, como ele fala, só é possível existir umidificador. Eu sou uma pata andando em cachoeiras, ele é um mestre, mas eu enxergo melhor o recuo do mar.
Eu acho doido ser um bicho de um lugar e perambular por tantos outros. Me adaptar a dormir na rede, a usar banheiros diferentes, aos climas, comidas, sotaques. Ver como os lugares mexem com meu corpo, comigo, e poder experimentar como seria a minha vida em outro bioma. Ouvir deles o que acham do meu habitat enquanto eu descubro um pouco mais do deles.
Por agora, a umidade tá bagunçando meu corpo, mas em breve minhas canelas vão sofrer com a secura e meu nariz vai sangra com a altitude. Palpites? Pô, tá fácil, deixei até o nome aqui na newsletter!
Se chegou até aqui, me conte o que achou desse formato?
Com amor e muito - muito - frizz no cabelo,
Amei esse formato!
Pra mim, ler esse texto foi viajar junto com vc nessas lembranças, adorei mesmo!
Eu gosto tanto da sua escrita, Lanna! Esse formato tá muito bom.