35 | A casa do contrabandista [España 🇪🇸]
Uma casa de pedra numa cidade medieval dá nisso.
📍 Torla, España
Richard subiu pro quarto enquanto eu lavava a louça na gelada cozinha de pedra. O barulho da pia toma conta de tudo, não dá pra escutar mais nada. Só quando termino, seco as mãos, noto o silêncio do ambiente.
Encho minha garrafa de água na pia, pego meu celular e arrumo tudo para poder ir ao quarto. Com o apagar da última lâmpada, eu sinto uma brisa fria passar por mim. As janelas estão fechadas, ainda não abri a porta, mas meu corpo se arrepia.
Mordo meu lábio para me dar a coragem da adulta que sou para cruzar toda a cozinha e ir até a porta. Não tem mais ninguém aqui, repito em minha cabeça. Olho para as escadas de pedra no canto da cozinha, que levam para um tipo de porão com sofá e jogos de tabuleiro.
Me convenço de que preciso ligar o flash do celular para não trombar em nenhuma mesa ou cadeira, é pra enxergar o caminho. Evito olhar sob meu ombro, não saberia o que fazer se ver uma mosca passando. Acelero o passo, prendo a respiração.
Por estupidez, olho na escada para ter certeza que nada vai sair dali. Vejo algo se mover, assusto, e desvio o flash por medo. Acelero o passo. Coloco a mão na maçaneta da porta para abrir e volto a olhar para a escada. Nada se mexe, apenas meu coração que salta do peito.
Saio da cozinha e fecho a porta atrás de mim, subo até o quarto prendendo a respiração e começo a dar risada. Não sou de acreditar ou desacreditar em espíritos e fantasmas, mesmo já tendo algumas experiências que me convidariam a acreditar na existência. Não sei, vivo como se eles estando lá ou não, eu tô cá e segue vida.
Falo pro Richard o que acabei de viver e ele diz:
– Não me surpreenderia que numa casa com uns bons séculos de idade tivessem fantasmas.
Agora tem que apagar a luz do quarto pra dormir. Tenho que me lembrar que tenho 31 anos antes de apagar a luz. Esqueço minha idade e enfio a cabeça no saco de dormir. Começo a imaginar, se for alguém, quem seria?
Um antigo contrabandeador da Idade Média que fazia a trilha até a França, provavelmente. Aquela sala de jogos era onde escondia a sua mercadoria, e se preparava para os longos dias subindo e descendo os Pirineus para o lado francês em plena guera civil espanhola e disputa de fronteiras.
Imagino seu rosto, carregado de rugas pelo sol que enfrenta, e pela fachada mal-encarada que criou para se proteger. Antes de dormir, fico inventando conversas com uma garrafa de rum entre nós. O espanhol dele é diferente do que ouço hoje, ele ri das palavras em espanhol que desconhece.
Pergunto sobre a vida ali naquele povoado há quase um século, que ficou tantas décadas esquecida pelo tempo que agora tem menos de 400 habitantes. Ele se assusta, falou que tinha muito mais quando existia por aqui. Conto a ele sobre os Pirineus de hoje, um lugar que atrai pessoas de toda parte.
— Faz sentido, não conheci o mundo, as montanhas daqui de perto nem me deram motivos pra ir a outros cantos. Você devia ir conhecer.
Dormi
com a cabeça coberta epensando: “eu sei que o flash bateu em algum objeto e formou uma penumbra, mas talvez fosse legal conversar com um contrabandeador do século passado pra quebrar a linha do tempo".



Se você, assim como eu, gosta de ler sobre a vida de antes, descobri esses dias o livro: La escarcha sobre los hombres (ou Frost on the Shoulders) do Lorenzo Mediano, um escritor espanhol que recriou o mundo nos Pirineus durante a Guerra Civil Espanhola dos anos 30. Não li e não tenho referências, viu? Estou apenas na vontade de adicionar mais um livro do país Espanha. Pode ser que você se interesse, mas infelizmente não achei traduzido pro português, apenas espanhol ou inglês mesmo.
Com amor, inventando umas conversas por aí,
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Quem escreveu esse trem aqui?
Oi, sou a Lanna, jornalista por formação, comunicadora desde sempre. Viciada em chocolate, macarrão e curry. Viajante desde 2017 e escritora desde que aprendi a rabiscar cadernos. Eu não dispenso uma boa conversa com desconhecido, e adoro questionar as pessoas como elas enxergam a vida.
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Legal demais!!! Também fico imaginando, nesses lugares com muitos anos de história, quem passou por ali, como vivia e tal. Se conversar com os locais hoje já é incrível, imagina conversar com alguém que viveu ali durante a guerra civil espanhola, nohhhh.
E a paisagem com essa cachoeira, montanhas nevadas, tá doido, surreal!!!