📍 Madrid, Espanha 🇪🇸 | 13 de maio de 2025
Deitados no chão frio do aeroporto, chegam dois brasileiros também buscando refúgio na madrugada. Meu corpo desembarcou em Madrid, Espanha, pouco depois de uma hora da manhã. Ali não era nosso ponto de partida, era Lisboa, Portugal. E para chegar até lá, tínhamos que esperar um ônibus dali 8h. É difícil conversar, eu ainda não me sinto em mim. Muito cedo pra ser eu.
Na conversa para nos distrair do tempo que insistia em engatinhar, contamos de como viemos parar ali: dois goianos, um mineiro e uma paulista. Um goiano ia partir pro Caminho de Compostela, estava apreensivo e com a mochila cheia, sinal que teria que se desfazer de muitas coisas no caminho. O mineiro estava indo viajar de férias, morava em Lisboa e ansiava colocar bermudas e entrar num mar mais agradável.
Eu e Richard resumimos nossa aventura, que iniciava ali, ao lado deles, naquele chão frio de aeroporto. "Vamos viajar de Portugal até a China por terra, sem usar avião". Assim que terminamos, um deles estava embasbacado:
— Calma, vocês vão fazer tudo isso, começam hoje… vocês não deveriam estar mais empolgados?
Era? Será? Talvez ele tenha razão… pensei.
Eu e Richard nos olhamos, cansados do longo voo, da maratona de despedidas, das mochilas feitas, desfeitas e refeitas inúmeras vezes. Começar cansado é um mau presságio? Será que era para eu estar feliz ali, sentada num aeroporto quadrado e frio? Quando será que o resto do meu corpo vai chegar? Acho que ele foi extraviado no voo pra cá, acho que não “cheguei” ainda.
O canto
📍Lisboa, Portugal 🇵🇹 | 14 de maio de 2025
Finalmente encontramos um lugar para escutar o famoso fado. Antes de vir pra Portugal esse foi um dos meus únicos pedidos: ir a um restaurante para sentir a música portuguesa. Confesso que esperava ouvir nas esquinas da cidade, com o som saindo pelas tantas varandas e balcões dos apartamentos.
Mas não, foi preciso caçar e tentar driblar as atrações feitas sob medida para turistas. "60 euros por um prato de bacalhau com vinho e fado”. Cobrar couvert, apoiado, mas não preciso de um show, eu quero um fado vadio.
Vadio porque é o vagabundo, de rua, improvisado. Você não vai encontrá-lo nas rádios, CDs e muito menos em streaming. Ele é único, escutado no seu estado mais cru, onde músicos que tocam a guitarra portuguesa brincam com as notas e os cantores com as cordas vocais.
Onde os portugueses escutam fado? Ou escutam em suas casas? Ou é num lugar escondido de forasteiros como eu?
Não tenho como não comparar com o que meu corpo conhece de cor e salteado. Rodas de samba, bandas de forró, duplas sertanejas. Me parece que a cada esquina do Brasil se escuta música, algum ritmo enfeitando a vida. Aqui, senti falta. Foi até difícil montar uma playlist de Portugal de tão silenciosa.
Andando pelas ruas do Baixa Chiado e Bairro Alto, zonas centrais turísticas, mas que ainda diziam ter algumas pérolas fadistas escondidas. Dizem que é entre os bairros Alfama e Mouraria que tem os melhores, onde lutam pelo lugar de "berço do fado". Não tínhamos muito tempo em Lisboa, precisávamos sair bem tarde da noite pra encontrar um fado.
O que achamos foi um pequeno cubículo, cabendo no máximo 12 pessoas. Era uma Tasca, como chamam os pequenos restaurantes daqui. Mesas coladas, apesar do aviso na parede da época de Covid pedir 2m de distância entre as pessoas. Escura, pintada de vermelho vinho, com velas sendo a única iluminação. A parede repleta de fotos, quadros e pratos parecendo azulejos.
No meio das conversas de cada mesa ecoando no ambiente, eu e Richard abrimos nosso coração um para o outro dos sonhos e anseios dessa jornada que estava só começando. Falei sobre a pergunta de "não estar tão empolgada quanto deveria", de ainda não me sentir ali, de corpo presente, como se meu corpo estivesse perdido entre Brasil e Portugal.
– Calma, amor, não precisa ter pressa, nossa ficha vai cair em algum momento - Richard me lembrou.
Nisso, uma mulher sobe ao palco. Em silêncio. Todas as poucas mesas param de falar, se viram para o palco. Em mais dez segundos sem emitir um som sequer, a mulher apenas respira fundo e olha firme para cima. Como se esperasse algo acontecer para cantar. Fecha os olhos, abre a boca e o ambiente todo se transforma.
Nem os músicos ousaram tocar em seus instrumentos, aquele era um momento dela, só dela. Que, sem microfone, fez com que todos deixassem de respirar. Nisso, sua voz delicada ganhou uma potência que eu nem imaginei ser possível. Os músicos se juntaram a ela como pano de fundo. Ela cantava com tanto amor, com tanta dor, que não era possível que não estivesse pensando em alguém.
O fado tem dessas, a música da melancolia, da nostalgia, das dolorosas despedidas. E que ironia começar o trajeto falando de saudades, de tudo o que deixamos pra trás, e que talvez não tenha mais volta. Por outro lado, dizem que fado vem da palavra latim “fatum", que é destino, que a vida sempre segue, sinta o que sentir.
Nisso, fecho os olhos pra sentir dentro de mim o que estava borbulhando. Imagino esse mesmo fado e tantos outros sendo entoados nos portos e nas tantas varandas da cidade há séculos. Pessoas de olhos no horizonte, balbuciando fados para os amores e marinheiros que se foram.
E também em quem partiu, nos barcos, chorando fados de quem só queria um abraço quente dos que ficaram em terra firme. Dos que permaneceram na cidade com cheiro de mar e peixe, gosto de água salgada das lágrimas que lavam as ruas. Um país feito de saudades, de despedidas. E é com eles que aprendo a me despedir.
Quando me dou por mim, estou chorando. Meu corpo todo pulsa a cada nota da fadista, sinto pequenas vibrações nos dedos tomarem conta de mim. A voz dela me atravessava com tanto amor que seria impossível não sentir nada.
Ela cantou quatro músicas. Acho que se cantasse mais, as cordas vocais iriam estourar. Ou eu iria desidratar. Quando se retirou do palco, todos aplaudiram ainda hipnotizados, sem dizer nada. Olhei para o Richard, com olhos molhados, e sussurrei:
– Meu corpo chegou. Aqui começa a minha Rota da Seda.
Se quiser assistir a esse fado, só clicar aqui pra assistir o vídeo. Vale a pena!
Com amor, e ainda enfeitiçada,
Quem escreveu esse trem aqui?
Oi, sou a Lanna, jornalista por formação, comunicadora desde sempre. Viciada em chocolate, macarrão e curry. Viajante desde 2017 e escritora desde que aprendi a rabiscar cadernos. Eu não dispenso uma boa conversa com desconhecido, e adoro questionar as pessoas como elas enxergam a vida.
Gosto de escrevinhar histórias que vivi, senti, e ouvi por esse mundão véio sem porteiras. Agora, numa jornada -insana- de Portugal a China por terra. Bora nessa? Se achegue mais, puxe uma cadeira. Fica o convite para responder essa história e me contar sobre você ✉️
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Planejar e desejar algo por muito tempo cria um efeito engraçado, que parece distorcer a relação espaço x tempo. Quando chega a hora de viver o que estava no plano das ideias, parece que não é real e que nosso corpo não está presente... Mas o inverso também é verdade, e com seu texto podemos te sentir daqui. Você está aí, aqui e em todo lugar, garota.
Ei Lanna,
Acho que a vibração da sua vivência ainda estava muito viva quando escreveu esse pedacinho da sua história. E foi assim que eu me vi inspirada a seguir em frente com a fé de que, também na minha jornada particular, logo menos estarei de corpo inteiro pra encarar os desafios que a vida trará.
Obrigada pela generosidade de compartilhar sua jornada!